Bobbio fornece livro útil para os interessados em ingressar e dar os primeiros passos na ciência política
Estado, Governo, Sociedade: Fragmentos de um Dicionário Político, como o próprio subtítulo indica, é um livro destinado a fornecer diretrizes e definições de conceitos complexos para o leitor. Um exemplo é o termo Estado. Embora muito utilizado e discutido, qual a sua definição precisa? Como o Estado moderno surgiu? No início da obra, Norberto Bobbio nos diz que esse livro serve como um material para consulta, para auxiliar no desenvolvimento de teorias que usam os termos apresentados.
Apesar de ter sido publicado na década de 1980, o livro continua muito atual, como pode ser visto na parte relativa à governabilidade. Bobbio levanta uma das questões mais quentes do debate público: a dicotomia sociedade civil e Estado. Os indivíduos que compõem essa sociedade exigem maior prestação de serviços públicos, ao mesmo tempo em que as instituições políticas não conseguem entregar toda a demanda, dando origem a crises de governabilidade e tensões sociais. No campo da economia, esse dilema envolveria a distribuição dos recursos públicos, com a consequência de uma crise fiscal puxada por crescentes demandas pela população (durante a resenha irei contextualizar os conceitos do livro com a órbita econômica, uma vez que minha leitura ocorreu dessa forma - e também porque meu objetivo de se aventurar em outros campos de conhecimento é complementar a discussão que realizo sobre economia).
A questão da governabilidade era uma pauta controversa nos anos de 1980, quando vários países caíram na estagflação (baixo crescimento com inflação crescente). A solução para esse impasse ocorreu pelas reformas econômicas que abriram os mercados domésticos e que ajustaram as contas públicas, tornando a participação do governo na economia mais racional e sustentável - é o ponto para o qual o Brasil precisa avançar e atingir.
O primeiro capítulo do livro trata a diferença entre direito privado e direito público. O direito privado é aquele concernente aos indivíduos, enquanto o direito público se refere à coletividade. Essa dicotomia se desdobra em dois interessantes conceitos, a publicização do privado (o Estado adentra em interesses privados, subordinando a vontade privada ao interesse coletivo) e a privatização do público (indivíduos e grupos privados utilizam mecanismos públicos para atingirem os seus objetivos). Um exemplo do primeiro termo é a atual discussão de medidas para conter a mudança climática - o Estado moldaria políticas e regras que iriam alterar os incentivos do setor privado de modo a conter a poluição. No caso do segundo conceito, eu recorro à experiência brasileira, quando grupos de empresários (esfera privada) pleiteiam subsídios (ferramenta pública) para suas empresas - a privatização do público pode facilmente ser entendida como um tipo de capitalismo de compadres, se vista de forma pessimista. Novamente, esses conceitos nos remetem ao dilema do tamanho ideal do Estado, os seus limites, e problemas que podem advir da interação do setor privado com o público.
Posteriormente, Bobbio define o que é sociedade civil. Sociedade civil pode ser entendida pela interação dos indivíduos para resolverem questões econômicas, sociais, políticas e ideológicas, com a arbitragem de instituições públicas. Um dos principais componentes que conectam demandas da sociedade civil e a repassam para o Estado são os partidos políticos. Estes representariam as preferências nacionais, teriam como objetivo oferecer respostas para a população - daí a anomalia do sistema político brasileiro, composto por mais de 30 partidos políticos (haja corrente de pensamento para tanto partido). A opinião pública, portanto, não é pública por definição, ela precisa se tornar pública. Além dos partidos políticos, que poderiam instrumentalizar esse processo, a imprensa também teria relevante papel em apresentar a opinião da população, tornando-a pública.
O autor mostra várias definições de Estado, ilustrando a variedade de formas de compreendê-lo. Uma delas é a definição sistêmica, que nos diz que Estado é um aparato de instituições que incorporam os problemas da sociedade. Subsequentemente, as respostas produzidas por essas instituições seriam vinculatórias, isto é, toda a população deveria segui-la, gerando novas rodadas de questões a serem solucionadas pelo Estado, com novas respostas fornecidas por ele - um verdadeiro looping. Mais recentemente, Estado moderno tem sido definido pelo monopólio (legítimo) de usar a força e conjunto de instituições destinado a prestar serviços públicos - daí a importância da burocracia, que serviria para realizar essa prestação (o problema não é a burocracia por si, mas sua lentidão e baixa efetividade em resolver demandas).
Definido o Estado, o próximo passo é a teoria do poder político. O poder político decorre das decisões e interações dos poderes legislativo, executivo e judiciário. Para alguns autores, como Hegel, o Estado seria amoral, não sofrendo restrições de moralidade para suas finalidades e ações. Para outros, como Kelsen, o Estado exerceria o seu poder criando e aplicando o direito.
Se aproximando do final da obra, Bobbio apresenta o Estado representativo, evolução conceitual do Estado estamental. Neste Estado, a representação ocorria por corporações e grupos, ao passo que no Estado representativo é o indivíduo que é representado, com base em direitos políticos. Novamente pode-se citar os partidos políticos com a função de intermediar essa representação, por vezes levando demandas populares para que sejam convertidas em novos direitos e obrigações do Estado - também chegamos ao dilema qual o tamanho e limite do Estado.
Dentro do Estado representativo, temos o conceito de democracia, forma de governo vinda dos clássicos, dos gregos. Dentre as justificativas para a preferência desse sistema, Bobbio apresenta a de que o povo não iria abusar de si mesmo, argumento derivado da máxima de que quem detém o poder tende a abusar dele. Outra forma de defendê-lo é o de que ao ampliar a participação popular no destino político do Estado, aumenta-se tanto a legitimidade de quem governa quanto a prestação de contas do eleito para o seu eleitorado. Nesse último caso, mesmo partes minoritárias da população não poderia ser negligenciada, pois custaria votos e capital político para o eleito. A democracia seria uma forma de incluir demandas populares nas decisões do Estado.
Uma das explicações para a elevada (e contínua) desigualdade social e de renda brasileira é a de que o sistema político demorou muito para incorporar o povo nas discussões públicas. Pelo menos desde a Proclamação da República (1889) até a Redemocratização (1985), o anseio popular teria sido negligenciado. A Constituição de 1988, dessa forma, seria uma alternativa para reverter décadas de negação de um papel para o povo brasileiro nos afazeres políticos (em parte a Carta Constitucional endereçou algumas demandas, mas também criou outros problemas, notadamente o de "quem pagará a conta pela expansão dos serviços públicos?", e também propagou privilégios injustificáveis).
Além de apresentar esses conceitos, Bobbio os discute com governos históricos, eventos passados e contemporâneos, e os contrasta com a opinião de outros autores. É um livro rico em teoria e atual pela forma com a qual tratou essas questões. Não bastasse essas qualidades, Bobbio mostra domínio do tema e grande capacidade intelectual para avançar essas discussões.
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