Nietzsche questiona a formação de valores e morais
Além do Bem e do Mal foi o primeiro contato que tive com escritos de Nietzsche, autor considerado de difícil entendimento, polêmico e controverso. De fato, esses adjetivos foram confirmados, pelo menos na minha opinião. Grande parte de suas mensagens deve ser vista pelas entrelinhas, jogadas de forma dispersa e sutil em meio aos aforismas presentes no livro. O autor nos guia por diferentes caminhos para mostrar o seu ponto - apresentando conceitos e interpretações durante o trajeto. O resultado é um livro de notoriedade mundial.
O objetivo é mostrar que os valores e a moral que seguimos foram construídos ao longo da história da humanidade. Em cada sociedade dominante, em particular, sua aristocracia, forjou o sistema de valores que guiariam as ações da população. Segundo Nietzsche, a ascensão da religião Católica representou uma inversão dos valores vigentes, com a "moral dos escravos", dos oprimidos, dos "fracos" tomando projeção para se tornar a medida do comportamento humano. Sentimentos como compaixão, humildade e amor ao próximo (úteis para os escravos) passaram a ser vistos como guia para o aperfeiçoamento individual, enquanto egoísmo, inveja e ambição perderam espaço, tornando-se traços indesejáveis. Nas palavras do autor: "Desde o começo a fé cristã significa sacrifício: sacrifício de toda a liberdade, de todo o orgulho, de toda a autoconfiança de espírito; ao mesmo tempo que é sujeição, autoescarnecimento e automutilação".
Nietzsche critica autores que concedem virtudes elevadas para os homens. O autor nos diz que somos movidos, talvez de forma preponderante, pela ambição, egoísmo e arrogância. E que não há algo inerentemente errado em ser assim - tais aspectos estariam além do bem e do mal. Entretanto, como esses traços foram condenados pela nova moral e valoração, somos levados a disfarçá-los, usando "máscaras" na vida social, ou, nas palavras do autor, somos "muito artistas".
Se por um lado essa inversão de valores favoreceu os segmentos "inferiores" da população, a parte "superior" foi espremida ao se deparar com restrições a possíveis ações: "despedaçar os fortes, arruinar as grandes esperanças, lançar suspeita sobre o prazer da beleza, colocar por terra tudo o que era autônomo, valoroso, conquistador e arrogante – todos os instintos naturais do tipo “homem” mais elevado e bem-sucedido – foram lançados na incerteza, no tormento de consciência, autodestruição ". Essa transição de valores e morais recebe enorme atenção durante a obra, sendo um dos principais traços de toda a obra de Nietzsche.
Dessa forma, a igreja Católica teria alterado a valoração dos indivíduos, contribuindo para enfraquecer a vontade de potência dos homens. Esse termo é famoso e faz parte da estrutura de pensamento de Nietzsche, o qual ilustra um inato desejo de ação, de descarregar energia, de avançar: nós humanos teríamos essa necessidade de tomar ações. Portanto, ao restringir determinados comportamentos, a religião seria uma afronta à vontade de potência.
Em outras obras o autor relaciona de forma mais explícita a ascensão desses valores com o ressentimento. É dessa relação que podemos entender parte dos escritos de um seguidor contemporâneo de Nietzsche, Luiz Felipe Pondé, que também enxerga ressentimento na humanidade como impulso para determinadas ações. Tal ressentimento surge pela inveja, pela incapacidade de atingir novas alturas, de ascender na escala social. Esse sentimento faz com que os ressentidos tentem barrar a trajetória dos que lograram melhor destino. A corrente socialista é alvo de críticas por Nietzsche, o qual percebe ressentimento de seus defensores em relação à ordem econômica-social.
O regime político democrático, como o socialismo, também não recebe as graças de Nietzsche, sendo este um dos motivos que o tornam um autor polêmico, além das críticas sobre o catolicismo. Para o autor, a democracia teria surgido, em parte, pelos apelos dos cristãos que disseram que "todos eram iguais perante a Deus". Um desdobramento no campo político seria a "igualdade perante a lei" - característica de democracias. Como Nietzsche defende "homens superiores", aqueles que fazem a sociedade avançar, a democracia, ao nivelar todos, estaria em contradição com esse processo.
Há discussões sobre um papel mais ativo das mulheres na sociedade, as "máscaras que usamos para viver" e níveis de cultura. O livro é rico em variar os tópicos analisados, sendo comum pular de uma discussão para outra, e depois voltar para o ponto inicial. Como disse no início, dificulta um pouco o entendimento geral, mas fornece vários insights que nos conduzem à tese proposta pelo autor.
A ascensão do "homem superior", "eterno retorno" e o ressentimento, eixos fundamentais para a compreensão da filosofia de Nietzsche, são pouco mencionados nesse livro, o que pode dificultar um maior entendimento; por isso muitos recomendam a leitura dos outros livros que escreveu, os quais fornecem aprofundamento e continuidade. Foi o caminho que segui. Na primeira vez que li Além do Bem e do Mal, ao mesmo tempo que captou minha atenção, me deixou com dúvidas sobre alguns pontos que pareceram sem conexão. Lendo os demais livros do autor é que fui absorvendo sua mensagem, bem como as conexões existentes. Nos próximos meses irei escrever resenhas dos demais livros.
Por fim, a leitura desse livro é bem vinda considerando a noção que ele fornece sobre a construção de valores e morais que vivemos, que damos como existente e pouco questionamos, sem dizer se estão corretos ou errados, até porque é difícil fazer esse tipo de avaliação em uma tomada histórica. Ao mostrar essa "endogeneidade" dos valores e morais, Nietzsche mostrou enorme sensibilidade para a compreensão das sociedades.
Ótima resenha. É a segunda obra dele que leio e apesar de já ter noção de como Nietzsche pensa o início de "Além do Bem e do Mal" parece confuso sem uma contextualização.
ResponderExcluirObrigado pelo comentário, Larusse. Quando iniciei minha leitura de Nietzsche, também tive muitas dificuldades. Elas foram reduzidas conforme avancei na leitura de outras obras.
ExcluirO senhor tem que ler mesmo é aqueles livrinhos igrejistas feitos por pastores e padres! :as obras de Nietzsche é de impacto convucional se é que essa palavra existe só ele sabe o peso que seu espírito é alma teve que suportar para levar certas claresas e lucidez a poucas almas! :AQUELAS QUE AINDA SOBREVIVEM SEM PAICHONITIS.
ExcluirTão “inteligente”… não sei como escreve “as obras… é…” esse não tem dúvida, mas dívida com o vernáculo!🤮
ExcluirResenha perfeita!!
ResponderExcluirObrigado!
ExcluirExcelente resenha Lucas! Obrigada por compartilhar.
ResponderExcluirObrigado! Por nada!
ExcluirContribuiu muito! vou buscar outras leituras.Obrigada!
ResponderExcluirPor nada! Boa sorte com as novas leituras
ExcluirResenha excelente, era o que eu precisava pra iniciar minha leitura. Obrigada.
ResponderExcluirObrigado. Tenha uma ótima leitura
ExcluirÓtima resenha, comecei a ler achei confuso, ainda mais por Nietzsche citar outros filósofos no caminho, mas lendo a resenha obtive maior vontade em continuar.
ResponderExcluirÉ assim mesmo. No início é difícil seguir a linha de raciocínio de Nietzsche. Mas com o tempo ela se torna um pouco mais clara. Obrigado e boa leitura.
ExcluirFui introduzido em filosofia a partir do curso de teologia no STBC, na disciplina de introdução a filosofando fui fisgado pela ousadia e lucidez e neutralidade de Nietzsche. Estou lendo Acima do bem e do mal e nas buscas para entender encontrei essa resenha que me faz estar mais animado para imersão nessa estranha e desafiadora lucidez desinteressada de Nietzsche.
ResponderExcluirObrigado!
Por nada. A leitura de Nietzsche empolga porque, além da qualidade de suas discussões, argumentos, ironias e reviravoltas no pensamento, ela nos desafia a formar um todo coerente, emendando raciocínios soltos que ele deixa no ar. Como ele afirmava, sua obra é para poucos leitores. Eu vejo essa estratégia de escrita como um desafio adicional e incentivo para nos aprofundarmos em seu pensamento.
ExcluirJá tive curiosidade e medo de ler esta obra. Ao ler esta resenha me empolguei, uma vez que me deu o sentido do título. Daí, já me veio a frase da campanha NÃO JULGUE O LIVRO PELA CAPA. Logo, também, devemos repensar o julgar o livro pelo título. Obrigado, Luccas
ResponderExcluirÉ isso aí. A leitura é excelente. Por nada!
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