quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Economistas não gostam de pobres?

Gasto insustentável para ajudar os mais pobres termina por prejudicar os pobres de hoje e do futuro

crise fiscal gasto


O governo tem se esforçado em criar espaço fiscal que possa permitir o aumento do gasto público no programa Auxílio Brasil, sucessor do Bolsa Família. A justificativa é a de que o país possui inúmeras famílias que necessitam desse suporte para que não caiam no limiar da fome. De fato, como economia de renda média, com diversos problemas sociais, a fome consta como um deles. Ademais, os preços crescentes, especialmente da cesta básica, coloca novos desafios sobre indivíduos extremamente pobres. 

A questão é como financiar o aumento do gasto em um país cronicamente endividado. A solução proposta foi a PEC dos precatórios, a qual representaria o furo do teto do gasto. Além desta opção, havia duas alternativas, muito ruins, como falarei brevemente. Esse gasto poderia ser financiado pela emissão de dívida pelo Tesouro. Todavia, atualmente as taxas de remuneração desses títulos estão elevadas, superiores a 11% ao ano. Logo, essa alternativa iria onerar ainda mais a posição fiscal do governo.

A segunda alternativa, à la Venezuela e Argentina, é simplesmente criar mais moeda, mais reais, e usá-los para financiar o programa. Por ser emissão direta de dinheiro, a inflação seria fortemente impactada. A criação de moeda obrigaria o Banco Central a enxugar a liquidez criada no mercado pela operação de compromissadas - autoridade monetária venderia títulos de curtíssimo prazo, com rentabilidade da taxa Selic, no mercado interbancário. Caso não procedesse dessa forma, poderia perder o controle sobre a taxa de juros básica. Portanto, como pode ser percebido, a criação de moeda também implicaria em endividamento público, mas não pela União, e sim pelo Banco Central. Esse último ponto é muito mal compreendido em debates de criação de moeda. 

Bem, voltando ao furo do teto, o mercado financeiro reagiu de forma adversa à mera intenção de contornar a regra fiscal. O dólar disparou, o mercado de ações caiu e a taxa de juros de longo prazo subiu nos dias de discussão. Foram resultados esperados. Ignorar a restrição fiscal não é prática saudável para nenhuma economia, mesmo as desenvolvidas. 

Li comentários zombeteiros de que "economistas neoliberais dizem que dar dinheiro aos pobres os prejudica, e que a melhor opção seria não realizar esse tipo de política". Se resolver a pobreza fosse simples, perpassando apenas pelo aumento do gasto público, tudo seria muito fácil. O ramo da ciência concernente à economia, a Ciência Econômica, não precisaria de existir, pois bastaria "dar dinheiro", e os problemas iriam sumir. Mas a questão envolve mais detalhes.

Governos endividados (e que enfrentam elevadas taxas de juros de rolagem da dívida) prejudicam primordialmente os mais pobres pela expansão do gasto porque o equilíbrio macroeconômico é colocado em situação de risco. A dívida elevada somente é financiada caso credores aceitem incorrer em maior risco. Por isso as taxas de juros de títulos públicos estão subindo. Há percepção de que o Brasil não está ajustando suas contas, podendo não honrar suas dívidas, logo, a resistência de investidores em comprar os títulos brasileiros faz com que suas taxas subam, o que contrabalança o maior risco: há maior risco, mas também há maior retorno. Um típico trade-off

Outros investidores estão preferindo sair do mercado de ações, pois o desarranjo das contas públicas pode respingar sobre as empresas que atuam no país, reduzindo os seus lucros, vendas e receitas. Essa piora se reflete no valor de suas ações. Por conseguinte, o mercado de ações perde valor em consonância com a piora fiscal.

A saída de capitais do país representa a troca de moeda doméstica (real) pelo dólar. Eleva-se a demanda pelo dólar. Temos, neste caso, elevação da taxa de câmbio. Também não configura mero acaso termos um câmbio muito depreciado em comparação com outros países. 

Quando se afirma que o mercado financeiro reagiu mal ao "drible" no teto do gasto, o que está ocorrendo é a retirada de dinheiro do país por milhares de indivíduos. A expressão mercado financeiro é uma simplificação, útil para construir raciocínio, mas que esconde o essencial. O elemento principal é a crescente aversão a investir no país pelos indivíduos. Conforme estes optem por outras formas de investimento, em outros países, a ação dessas pessoas irá impactar o câmbio, o mercado de ações e as taxas de juros. O "mercado financeiro" nada mais é do que o resultado descentralizado de milhões, talvez bilhões de indivíduos. Essas pessoas estão ficando cada vez mais céticas quanto à viabilidade fiscal do Brasil, por isso o equilíbrio macroeconômico apresentou piora significativa nos últimos dias. O mercado financeiro não tem vida própria, não é uma entidade, é o coeficiente comum da ação de seus milhares de participantes. 

O Brasil atualmente está endividado e com parcos recursos fiscais para financiar programas sociais por causa da ausência de reformas no passado e por políticas econômicas equivocadas. Após a implementação do teto fiscal em 2016, ficou entendido que várias reformas deveriam ser realizadas para que este teto fosse respeitado, como as reformas previdenciária, administrativa, tributária e dos gastos (torná-los menos rígidos e mais flexíveis); do lado das políticas, conter o crescente aumento do gasto público, melhorar a racionalização da forma como o gasto é feito, revisar subsídios e programas. Pouco foi feito. Chegamos agora em 2021 com a urgência de aumentar o gasto, mas sem termos recursos para empreender esse ensejo. 

Os desarranjos do câmbio, do mercado de ações, dos juros, dos preços e das contas públicas configuram piora do equilíbrio macroeconômico. A consequência será uma economia que pouco cresce, e que, por isso, terá poucos recursos fiscais para auxiliar os mais pobres no futuro. O que presenciamos hoje é o longo prazo de medidas efetuadas (ou omissões) no passado

Sem essas considerações, tanto pelo equilíbrio macroeconômico, quanto pela omissão dos políticos com as reformas e políticas econômicas, concordo que pareceria estranho negar maior gasto público aos mais necessitados. Entretanto, a questão não é tão simples, e continuaremos a ter de lidar com esses tópicos no futuro, por mais desagradáveis que possam parecer. Por ser um recurso escasso, o gasto público não pode ser realizado da forma como tem sido tratado ao longo do tempo. Precisa de melhor racionalização, e da obediência às regras fiscais, para que no futuro não seja necessário driblá-las quando urgências surgirem. 








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