quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Resenha: Dez Mil Anos de Desigualdade (Timothy Kohler e Michael Smith)

Livro derruba mitos, esclarece pontos importantes e ajuda a entender o processo de desigualdade

renda riqueza capitalismo dinheiro


O tema desigualdade de renda tem cada vez mais ganhado espaço nos debates públicos e nas pesquisas acadêmicas. Um marco importante foi a publicação do livro de Piketty no ano de 2014, o qual evidenciou o crescente hiato de renda entre segmentos da população de diferentes países. Como os autores de Dez Mil Anos de Desigualdade (Ten Thousand Years of Inequality, no original) mostrarão ao longo da obra, desigualdade sempre existiu na história da humanidade. E criticam o tratamento desse assunto apenas tomando poucas décadas como referência. Essa é uma das surpreendentes e instigantes conclusões do livro. 

A afirmação anterior pode parecer vazia sem essa outra conclusão: níveis de desigualdade variaram nos últimos 10 mil anos, tanto para baixo quanto para alto, com casos extremos em ambas as situações. Há sociedades extremamente igualitárias, em que a percepção de que nossos antepassados ou eram governantes, ou governados e submissos, cai por terra. Esses capítulos retratam sociedades com mobilidade social e níveis baixíssimos de desigualdade, com índices Ginis da ordem de 0,2 - nem os países escandinavos (Finlândia, Noruega), notadamente igualitários, apresentam esse índice nessa cifra. 

Por outro lado, há também situações nas quais a desigualdade era muito grande, o que pode ter gerado tensões entre a população - difícil construir um nexo entre desigualdade e violência, dado o período histórico e as evidências disponíveis. Lembrando, esse livro é um estudo arqueológico de desigualdade, por conseguinte, a desigualdade é mensurada não somente considerando o rendimento, como é usual atualmente, mas as posses e bens, como cabeças de gado, e utensílios domésticos - tamanho da moradia e túmulos também ajudam na tarefa. 

Os autores identificam sociedades nas quais o alto nível de desigualdade foi rapidamente convertido para patamares mais baixos de distribuição de riqueza. Associam essa queda com eventos catastróficos, como pestes, guerra e agitações sociais. Como se vê, alterar drasticamente características estruturais de sociedades sempre foi difícil - até pouco tempo acreditava-se em revoluções socialistas, as quais também geraram danos gerais, mostrando a inocuidade dessa estratégia.

Para ilustrar a disseminação da desigualdade, a figura abaixo, extraída da obra, auxilia nessa tarefa. Comece na parte superior esquerda. A estabilidade climática com temperatura favorável propicia o aumento de recursos disponíveis e gera excedentes (parte superior direita). O acúmulo desses recursos pode ser transacionado ou armazenado, gerando previsibilidade no planejamento dessa tribo ou pequeno povoamento. O desenvolvimento de instituições para gerenciar esses estoques contribui para o surgimento de desigualdade e para sua propagação entre gerações devido a mecanismos que possibilitam o repasse de riqueza, como a instituição de direitos de propriedade (parte inferior direita).

renda dinheiro posse riqueza


Essa riqueza vista nos estoques pode também aprofundar relações sociais do tipo cliente e patrão, gerar lideranças que centralizam os recursos e elites que os gerenciam (parte inferior esquerda). Em todos esses casos, há aumento estrutural da desigualdade. Mas cuidado. Os autores mostram exemplos de sociedades nas quais o avanço institucional político e econômico não significou aumento da desigualdade. Nada é tão simples quando tomado em períodos longos. O mecanismo da figura é apenas um dos possíveis cenários.

Quando conheci o princípio populacional de Malthus, ainda na minha graduação, de que o aumento de recursos propiciava a expansão da população, e esta, se deparando com recursos escassos, tenderia a se reduzir por causa da fome, e que essa relação dependia crucialmente do clima, dado que a produtividade agrícola era fortemente dependente de fatores fora do controle do homem, nunca entendi comentários que zombavam de Malthus. Timothy Kohler e Michael Smith e demais autores (o livro é uma coleção de artigos escritos por vários autores) mostram que a previsão malthusiana era o que prevalecia nas sociedades antigas. Portanto, usando o período temporal da obra, Malthus acertou e se manteve correto por 9.750 anos. Sua teoria se tornou obsoleta, em parte, somente com a revolução industrial e o crescente progresso tecnológico dos últimos 250 anos.

Excelente observação dos autores é a de que a cooperação foi fator fundamental para o crescimento de pequenas civilizações e povoados. Todavia, a cooperação anda acompanhada de perto pela desigualdade (ou, nas palavras dos autores, "cooperation and inequality are natural bedfellows" - cooperação e desigualdade são naturais companheiras de cama), uma vez que a cooperação propicia ganhos de produtividade, gerando acúmulos de estoque, os quais podem ser transacionados. Processo que pode elevar a desigualdade. 

A leitura dessa obra derruba algumas afirmações comuns no debate público, como a de que o capitalismo é o principal culpado para o aumento da desigualdade atual, ou o de que vivemos tempos extremos, por causa de uma suposta desigualdade fora do controle. Tais sentenças não se mantém sob um olhar histórico (e arqueológico) - e mesmo econômico. 

O livro é pouco convidativo para o leitor leigo, porque é destinado para o público acadêmico. Portanto, os capítulos se detêm muito em detalhes técnicos, que podem tornar a leitura um pouco tediosa. Adicionalmente, fiz uma inspeção rápida na internet e não encontrei traduções desse livro. Dado o escopo do livro, não imagino que ele irá ganhar alguma tradução para o português. 

Por fim, apesar de não ter sido detalhado como foi calculado, em um dos capítulos é informado que o Gini dos Estados Unidos atualmente é de 0,8. Valor absurdamente elevado para os padrões calculados por trabalhos de economia (estou escrevendo um artigo sobre desigualdade, e o Gini desse país está por volta de 0,35-0,4. Os maiores valores da amostra que estou usando são do Brasil e da África do Sul, por volta de 0,5-0,6). Fiquei curioso com a métrica utilizada, talvez foram considerados outros fatores além da renda. De qualquer forma, isso elucida como o diálogo entre diferentes ramos da ciência pode contribuir para o esclarecimento de tópicos controversos e também alterar conclusões previamente levantadas - no caso, talvez o índice Gini que eu estou usando é mais limitado do que os dos autores de arqueologia, o que me forçaria a ter mais parcimônia em minhas conclusões.






Nenhum comentário:

Postar um comentário