quinta-feira, 25 de abril de 2024

Resenha: A Nova Razão do Mundo: Ensaio Sobre a Sociedade Neoliberal (Pierre Dardot e Christian Laval)

Livro mostra a racionalidade moldada pelo neoliberalismo

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O livro A Nova Razão do Mundo: Ensaio Sobre a Sociedade Neoliberal, de Dardot e Laval, descreve o surgimento e a evolução do neoliberalismo até os dias atuais; por vezes com um olhar marxista, principalmente através dos trabalhos de Foucault. Tem como pontos fortes a ótima discussão de autores que contribuíram para a emergência da atual ordem, como Hayek, Mises, Friedman, Becker, Spencer, Stuart Mill, entre outros. Como ponto negativo, como discutirei no final dessa resenha, é a conclusão (teimosa) que alguns autores marxistas costumam construir. 

Neoliberalismo significa a ordem na qual a competição do mercado aceita intervenções do governo. O próprio governo, inclusive, ajuda a criar as condições nas quais indivíduos e empresas interagem. O livro discute o aprofundamento do neoliberalismo, alterando nossa forma de pensar e agir.

Segundo os autores, a forma como pensamos foi construída através de séculos de evolução do pensamento liberal. Vivemos sob a lógica normativa global do neoliberalismo, e essa norma molda a forma como vivemos e interpretamos nossa existência. O neoliberalismo, portanto, foi além de recomendar e prescrever políticas econômicas e criar uma ideologia, mas alterou a nossa racionalidade

Essa racionalidade é baseada em uma competição praticamente irrestrita tanto no mercado quanto fora dele - um traço do neoliberalismo é transformar objetos e coisas não comerciais em comerciais, atribuir preços e transacioná-las. Neste cenário, nós indivíduos nos tornamos empresas, gerenciadas por nós mesmos. Alguns traços que reforçam essa conclusão: i) investimos em nossa educação e capacitação para melhorar nosso capital humano; ii) investimos nossa renda para elevar nosso capital e para realizar planos futuros; iii) algumas pessoas tentam investir esse capital em empresas e novos empreendimentos; e por causa dos pontos i, ii e iii), iv) tendemos a basear várias decisões, de esferas pessoais, ao cálculo monetário. Há autores que afirmam que mesmo se as empresas jurídicas deixassem de existir, o capitalismo continuaria funcionando, pois nós nos tornamos empresas individuais. Não é por menos que termos como educação financeira, ou slogans do tipo "invista em você mesmo", ganharam espaço em nossa rotina. Viramos empresas. 

A administração de nós, de nossa empresa, gera um crescente individualismo. Os humanos de hoje dependem menos de seus pais/parentes/amigos/comunidade, pois podem comprar e/ou terceirizar praticamente tudo na vida. Isso decorre do ponto que mencionei, da crescente mercantilização de tudo que existe no planeta. Como tudo vira um negócio lucrativo, e facilitador para nossas vidas, os indivíduos tentem a adquiri-los, se afastando, por outro lado, de relações afetivas e físicas. O mundo virtual chegou para preencher a lacuna do vazio das relações pessoais. 

Os autores apontam as 4 principais características da razão neoliberal. A primeira é que o mercado deve ser construído pelo governo e pelos aparatos institucionais. Essa é uma crítica constante no livro: o mercado não surgiria automaticamente; precisa-se de uma entidade que garanta condições para o seu surgimento. Esse seria o papel do governo. A segunda é o foco na competição, para além das trocas comerciais e contratos. O neoliberalismo nos direciona a uma constante disputa com os outros. A terceira característica é que o governo entrou nessa competição. O governo passa a ser avaliado e exigido a funcionar de acordo com uma empresa, apresentando lucro e realizando ações baseadas em análises de efetividade, custo e benefício. O quarto traço é o indivíduo-empresa, como mencionei anteriormente, o indivíduo que investe em sua capacitação, na sua aposentadoria, no seu patrimônio, e que toma decisões pautadas pela racionalidade econômica. Amizades passam a ser criadas não somente por afinidades, mas principalmente pelo networking, o retorno financeiro que podem gerar. 

A vida dos indivíduos é direcionada em dois objetivos: obter o máximo desempenho (performance) e a busca incessante de prazer. O indivíduo-empresa não descansa, é proibido atingir um ponto e considerá-lo satisfatório: devemos continuar correndo para superar metas passadas. Estamos, desta forma, em um jogo incessante (a competição). Consequências como ansiedade podem ser supridas pela utilização de bens (o prazer). Aqui o autor discute possíveis efeitos psicológicos colaterais em nossas vidas. 

Toda essa descrição não é muito inovadora, exceto talvez o foco na crescente competição nos dias atuais. O que mais gostei da obra foi a discussão dos autores que contribuíram para a emergência do neoliberalismo. Os autores mostraram ótimo domínio de suas teorias, conectando-as com desdobramentos políticos e econômicos. 

E aqui pareceu um paradoxo para mim. Como autores que leram grandes pensadores, e os entenderam, podem chegar a uma conclusão tão pobre? Mas estou pulando etapas, nem mencionei a conclusão. A divisão da obra é estranha, pois praticamente 9/10 (nove décimos) é baseada na discussão de como a razão neoliberal chegou até nós. Em outras palavras, nove décimos da obra é apenas revisão de trabalhos passados, com um ou outro comentário crítico de Dardot e Laval, pautados no pensamento de Foucault (a propósito, o não-economista Foucault é tratado como autoridade do pensamento econômico - escolha no mínimo estranha!). A contribuição, o que a obra oferece de novo, ocorre somente no seu final. E o final, por mais que os autores tentaram evitar o uso daquela palavrinha, usando termos como comunidade, solidariedade, eles terminaram defendendo a volta do... socialismo! Mas como?! 

Foi estranho porque a obra é bem escrita e desenvolvida e os autores têm conhecimento de grandes nomes da política e da economia. E para mim é mais estranho ainda porque o socialismo sempre fracassou ao longo de sua história. O socialismo sempre degenerou em ditadura, genocídio e pobreza. Por que insistir neste regime em pleno século XXI? Os autores vez ou outra criticam o capitalismo, o neoliberalismo, mas nunca respondem por que nós aceitamos e continuamos utilizando esse regime. Por que? Também não questionaram o porquê dos fracassos socialistas. A Alemanha Oriental teve de erguer um muro (O famoso Muro de Berlim) para que os moradores do lado socialista não fugissem para o lado capitalista (a Alemanha Ocidental). Isso não seria um indício de que talvez, talvez!, esse socialismo não é lá grande coisa?

Tenho colegas (professores, com doutorado) que defendem a volta do socialismo. Quando questiono eles com os fatos do parágrafo anterior, eles se defendem argumentando que o socialismo real ainda não foi testado. Socialismo real! E insisto no meu questionamento: se o neoliberalismo é tão ruim, por que ele não quebra como a União Soviética, Cuba, Venezuela, Coreia do Norte, ou Alemanha Oriental? Por fim, Dardot e Laval leram Hayek, Mises e Friedman, e esses autores explicam as razões do fracasso socialista - e mesmo assim a dupla simplesmente ignorou e se manteve fiel ao sonho socialista. 

Apesar da conclusão infeliz da obra, a discussão da ascensão do neoliberalismo é muito bem feita, merecendo a leitura. A conclusão pouco original de retorno do socialismo pode ser ignorada. 

De toda forma, eu continuo com minha política de ler autores que seguem pensamento contrário ao meu, como é o caso de Dardot e Laval. Gosto desse conflito de ideias (uma curiosidade: eu li os 3 volumes do livro Capital, de Karl Marx, totalizando em quase 3 mil páginas - e não me arrependo). E acho esse conflito de ideias necessário. Todavia, me decepcionei com a conclusão da obra.  







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