quinta-feira, 26 de agosto de 2021

O currency board na Argentina

Funciona parear a moeda doméstica com o dólar em valor sobrevalorizado?

crise crescimento inflação


A Argentina enfrentava sérios problemas em sua economia entre o fim dos anos 1980 e início dos 1990. Para se ter uma ideia, em 1989 sua taxa de inflação anual foi de 3.046%. Taxas dessa magnitude são chamadas de hiperinflação. A figura continuava ruim quando a análise se deslocava para o crescimento da produção. Também em 1989, a taxa de crescimento foi negativa em 7%. Um exemplo de estagnação: economia não cresce e ainda apresenta alta inflação. 

Percebendo que uma das origens dos elevados preços era a expansão da moeda, o governo argentino pensou em melhorar a política monetária de seu banco central. A ideia era retirar parte de sua liberdade, restringindo a margem de atuação de sua política. Como o país criava moeda de forma descontrolada, menor espaço para o banco realizar política poderia significar menor criação de moeda, logo, menor inflação.

O mecanismo que realizou esse objetivo foi chamado de currency board. O currency board se caracteriza por parear a moeda doméstica (no caso da Argentina, o peso) com uma moeda de relevância internacional (em geral é o dólar dos Estados Unidos, EUA) em valor fixado. Ao pareá-las, impõe-se uma taxa de câmbio fixa, que deverá ser seguida rigorosamente pelo banco central. Para manter o câmbio fixo, o banco central se compromete a comprar e a vender dólares para manter a paridade constante. Ao fazer isso, a autoridade bancária abandona a política monetária, isto é, deixa de controlar a oferta de moeda. Com esse arranjo, o banco central passa a ter atuação restrita e prevista pelo mercado.

Para o caso de economias sofrendo altíssimos preços, como era o caso da Argentina, essa opção tinha alguns atrativos. i) o banco central se torna mais disciplinado; ii) melhora das expectativas dos participantes do mercado (preços serão estabilizados dado o pareamento com uma moeda estável); iii) fim da hiperinflação. O gráfico abaixo, com dados do Banco Mundial, mostra o resultado da adoção desse mecanismo no caso da inflação.

currency board


Fica difícil verificar o valor da inflação nos anos posteriores à adoção do currency board (1991) porque a hiperinflação foi extirpada em um só golpe. Em 1990, ela era de 2.078%, caiu para 16% em 1991, e foi negativa em -3% em 1992. Analisando pela ótica da inflação, a adoção do currency board foi um sucesso. Ele conseguiu conter a expansão monetária efetuada pelo banco central e ancorou as expectativas inflacionárias dos argentinos. E o crescimento do PIB? O próximo gráfico o retrata, com dados do Banco Mundial.

currency board argentina


Veja que do ano de adoção do currency board (1991) até 1998, o desempenho da produção foi notável, embora tenha sofrido uma queda em 1995. A média de crescimento econômico nesse período foi de 5,7%, com preços estáveis! A Argentina conseguiu expandir significativamente sua economia sem deteriorar os preços domésticos. 

Um dos problemas foi que assim como em 1995, quando a crise no México causou efeitos adversos na Argentina, culminando na queda do seu PIB, em 1998 ocorreu a crise Russa, em 1999 a crise brasileira, e em 2001 os ataques terroristas nos EUA, que tornaram os mercados financeiros caóticos. Todos esses eventos afetaram fortemente as nações latinas (inclusive o Brasil), comprometendo o crescimento da produção. Mas justamente nesse momento entra o problema do currency board

Como economias desenvolvidas, como os EUA, a Zona do Euro e o Japão são mais ricas, possuem maior produtividade, suas empresas têm maior poder de fogo no comércio internacional. Economias em desenvolvimento, como a Argentina e o Brasil, embora possuam algumas empresas de destaque em determinados ramos, no geral perdem em competitividade com as multinacionais. A taxa de câmbio ameniza essa disparidade ao refletir, em parte, esse diferencial de produtividade e competitividade. As moedas da Argentina e do Brasil, peso e real, respectivamente, possuem valor inferior às moedas das economias de maior produtividade. Em outras palavras, a taxa de câmbio é desvalorizada. 

O problema da Argentina é que ela adotou uma taxa de câmbio de 1 peso para 1 dólar, enormemente apreciada. Dessa forma, o setor produtivo argentino deixou de contar com essa válvula de escape que permitia suavizar a disparidade de suas empresas. Imagine a adoção de um câmbio sobrevalorizado por quase uma década por uma economia com baixa produtividade. Foi justamente o que a Argentina fez. 

Com o cenário internacional adverso a partir de 1998, o banco central argentino perdeu rapidamente suas reservas cambiais. No final, não houve saída, o currency board teve de ser abandonado, ou seja, a taxa de câmbio foi permitida flutuar. Em poucos meses, o câmbio saltou de 1 peso/dólar para 3,75. Pense em empresas que possuíam dívidas em dólares. Em meses essa dívida quase quadruplicou de valor. Sim, isso aprofundou a crise e jogou a Argentina em um abismo ainda pior. 

A culpa foi inteiramente do currency board? Em minha opinião não. Considero um acerto a adoção desse mecanismo em 1991, o qual conseguiu estabilizar os preços e gerar maior crescimento econômico. Todavia, o que me parece um equívoco foi mantê-lo por tão longo período. Cito o Brasil como exemplo. No Plano Real, realizou-se algo parecido, pareando o real com o dólar em valores próximos a 1 real por dólar - chegando a ser menos do que 1 em alguns meses! (imagine o que diria Paulo Guedes de um câmbio tão sobrevalorizado!). Por que a experiência brasileira não fracassou? Simplesmente porque o governo realizou pequenas desvalorizações ao longo do tempo, e fez a transição do câmbio fixo e sobrevalorizado (iniciado em 1994) para o flexível com a adoção do regime de metas de inflação (em 1999), outro excelente mecanismo que controlou as expectativas inflacionárias. 

Há criticas de que o Brasil demorou muito para fazer essa transição. E parece que tais críticas têm fundamento. O argumento é o mesmo da Argentina. A economia brasileira não tem cacique para bancar um câmbio tão sobrevalorizado. Perderíamos de goleada em competitividade para as empresas estrangeiras. Todavia, de qualquer forma, a transição foi feita e o país manteve preços estáveis com crescimento razoável. 

Voltando à Argentina, então parece que o erro ocorreu pela não realização da transição em tempo oportuno. Demorou-se demasiadamente para abandonar o currency board. As empresas se viram com dívidas imensas, o país perdeu um componente para reverter a recessão (desvalorizações cambiais ajudam no ajuste porque barateiam as mercadorias domésticas e promovem exportações) e a confiança do mercado com o governo evaporou.

Começou certo, mas terminou errado. 

 

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