terça-feira, 10 de agosto de 2021

Resenha: A Organização: A Odebrecht e o Esquema de Corrupção que Chocou o Mundo (Malu Gaspar)

Gaspar desnuda o "capitalismo de compadres" que reina na economia brasileira

odebrecht propina caixa dois


Quando optei por ler esse livro, minha intenção era compreender melhor a operação Lava Jato e os seus desdobramentos, bem como relações entre políticos e empresários. Entretanto, para minha feliz surpresa, o livro entrega muito mais do que isso. Como Malu Gaspar afirma logo no início da obra, "conhecer essa história é essencial para entender o Brasil", a cobertura desde os anos da década de 1980 até os dias atuais evidenciam o funcionamento de uma economia conhecida por "capitalismo de compadres" na literatura de economia.

Essa expressão se tornou famosa principalmente na crise asiática de 1997, quando a prática de esquemas entre políticos e empresários, os primeiros concedendo créditos e facilidades para as empresas - sempre financiados por dinheiro público -, enquanto recebendo propinas, foi colocada como um dos pontos centrais para entender o declínio abrupto das economias emergentes da Ásia. Há variações dessa expressão, como "capitalismo clientelista". De qualquer forma, ela retrata o relacionamento ilegal e prejudicial para o país e para sua economia entre autoridades públicas com o setor privado. 

A Odebrecht, em seus primórdios, não era uma empresa de destaque nacional e tampouco internacional. O evento decisivo para sua ascensão ocorreu durante o regime militar, quando o presidente da empresa era Norberto Odebrecht, o qual indicou o caminho para o sucesso: "apoio político". Quando a empreiteira conseguiu entrar no círculo político, tudo mudou. As alianças com políticos, funcionários públicos, agentes da polícia e trabalhadores do judiciário possibilitaram a expansão das operações da empresa, com vitórias em várias licitações que forneciam receitas bilionárias. 

O "combinemos" era a reunião restrita apenas às maiores empreiteiras, na qual ocorria o acordo sobre os preços a serem cobrados nas obras e quais obras cada empresa operaria. Em outras palavras, era um cartel entre grandes empresas (oligopólios) com o objetivo de eliminar a concorrência entre elas, gerando maiores lucros para os seus membros à custa dos recursos públicos.

Os artifícios utilizados para operar em obras variavam aos montes. Doações oficiais e doações ilegais (caixa dois) para cooptar partidos políticos, propinas e favores especiais (como a reforma do sítio de Lula em Atibaia). As contrapartidas das partes que recebiam propina eram: i) fornecimento de crédito público subsidiado (com a intermediação do BNDES, Banco do Brasil, Caixa e Tesouro); ii) concessão de contratos (intermediação com Petrobras); iii) programas públicos que reduziam os custos de operação, como Refis de dívida; iv) emendas parlamentares que colocavam a Odebrecht como parte que operaria parte do projeto. Há também relatos de editais de licitação escritos pela própria empreiteira, auxílio de fundos de previdência pública, como o Petros (da Petrobras) e o Previs (do Banco do Brasil), entre outras "ajudas" promovidas pelos políticos envolvidos na famosa planilha que anotava a distribuição das propinas. 

Essa planilha se localizava no Departamento de Operações Estruturadas (DOE), o famoso setor que operava a distribuição das propinas e financiamentos de caixa dois. Como a Odebrecht dependia muito do setor público para realizar e expandir suas operações, conforme sua escala de serviços se elevou, os pagamentos de propina e caixa dois subiram em ritmo acelerado: em 2009, estes eram de 260 milhões de dólares. Subiram para 420 milhões em 2010, e atingiram 730 milhões de dólares em 2013. Atenção à unidade de moeda usada, o dólar. Portanto, em reais, a soma ultrapassava a casa dos bilhões. 

O resultado da falta de concorrência em obras públicas, contratos superfaturados e benefícios ilegais era (e continua sendo) um país com obras paralisadas e/ou atrasadas, com elevado custo. Como bem colocado por Malu, o conluio entre políticos e empresários contribuía para reduzir a produtividade da economia brasileira. Vou um pouco mais além e afirmo que não obstante esse efeito negativo, as contas públicas, a tributação, a eficiência do setor público e a alocação dos recursos econômicos são comprometidos. As contas públicas sofrem porque o governo desembolsa valores elevados e desnecessários, pressionando o aumento das despesas. A tributação tende a se elevar para compensar os desvios de recursos para empresas beneficiadas. A eficiência se reduz dado o alto nível de custo da obra e também a baixa capacidade da empresa (se fosse eficiente, por que recorreria tanto a vantagens ilegais e créditos subsidiados?). A alocação é ruim porque recursos públicos, que poderiam ser aplicados em áreas com maior retorno social (SUS, educação básica e saneamento) são canalizados em obras superfaturadas, sendo o superfaturamento uma das formas usadas pela Odebrecht para pagar as propinas. 

Ao longo da leitura, a percepção de que o problema do "capitalismo de compadres" se restringe apenas às empreiteiras se desvanece gradativamente. Pelos diálogos, declarações e delações, parece ser um problema sistêmico, permeando todo o país e, por consequência, penalizando o funcionamento da economia. Nesse ponto, lembrei do ótimo livro do economista de Chicago, Luigi Zingales, Um capitalismo para o povo, no qual o autor alerta para não confundirmos pautas pró-mercado (pleiteiam a modernização da economia) com as pró-negócios (empresários desejam proteção de mercado, escondendo esse desejo com teses nacionalistas). Pró-negócios era o caminho seguido pela Odebrecht, com declarações públicas de que apoiava a abertura da economia. Apenas no discurso, porque nos bastidores trabalhava para a elaboração de leis e regulamentos que concediam maior proteção aos "campeões nacionais". 

Nessa resenha, enfatizei apenas a parte voltada para a economia. O livro cobre negociações com políticos, apresenta investigações dos procuradores e agentes da Lava-Jato, conflitos familiares entre os executivos da Odebrecht, o temor de sofrer buscas e apreensões pela polícia federal, entre outros tantos tópicos interessantes. É um livro de leitura agradável. 

Imagino que o leitor que desejar levar o livro para a discussão ideológica terá dificuldades, pois os políticos envolvidos com a Odebrecht (com nomes na planilha de distribuição de propinas e caixa dois) abrangem todos os ramos. Faz sentido para a estratégia da empreiteira, que era cooptar o político que vencesse a eleição, não importado sua forma de pensar. Daí o apoio da Odebrecht para políticos como Aécio Neves, FHC e Temer, de um lado, e Dilma, Lula, Pimentel e Manuela d'Ávila, de outro. A famosa declaração de Marcelo Odebrecht ilustra esse ponto: Eu não conheço nenhum político no Brasil que tenha conseguido fazer qualquer eleição sem caixa dois. Caixa dois era três quartos [das receitas]. Não existe ninguém no Brasil eleito sem caixa dois (...) O político que disser que não recebeu caixa dois está mentindo”. 

Pontos controversos, como o áudio de "estancar a sangria", significando barrar o avanço da operação Lava-Jato, também são tratados no livro, igualmente a omissão dessa operação em encontrar propinas entre a empreiteira e juízes graduados no governo, por exemplos, os juízes do STF. O questionamento de Malu é válido. Uma empresa que não hesitava em comprar políticos, ministros de Estado, presidentes de variados países (como a dupla que derrubou a Venezuela, Hugo Chávez e Nicolás Maduro), jogaria limpo nas disputas judiciárias? Os procuradores de Curitiba encontraram contratos suspeitos, mas as investigações não avançaram.

Após a leitura do livro, tive de concordar com a frase inicial de Malu: conhecer essa história é essencial para entender o Brasil. Adicionalmente, puxando novamente para o lado da economia, ajuda a compreender o porquê de reformas essenciais para a economia brasileira não avançarem, e a miríade de problemas na forma como os mercados funcionam no país.






Nenhum comentário:

Postar um comentário