sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Resenha: A Vida é Difícil (Kieran Setiya)

Como viver bem em meio à condição humana, marcada pelo sofrimento?

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A Vida é Difícil (Life is Hard, no original) é daqueles livros que, tão logo são escritos e publicados, rapidamente se tornam best-sellers. O assunto é vasto, almejado por muitos; mais do que almejado, é buscado por religiões e diferentes modos de vida. Como viver em um mundo marcado por dificuldades e sofrimento? Kieran Setiya toma essa questão a sério e a discute com argumentos filosóficos. 

Kieran nos avisa que todo o livro é baseado em filosofia (Kieran é professor de filosofia do MIT). Desta forma, durante sua leitura o autor apresentará argumentos de grandes filósofos, como Platão, Aristóteles e Nietzsche. Discutirá suas ideias, as atualizará, e as criticará. Kieran não fica em cima do muro, com desfechos vazios ou neutros ("em cima do muro"). Em todo capítulo teremos uma conclusão.

A premissa do livro, resumida na epígrafe, é que não sabemos dos sofrimentos que cada um de nós carrega. Mas é uma certeza que todos sofrem, pois estamos condenados à condição humana. A condição humana decorre de causas naturais, como o envelhecimento, a morte de pessoas próximas, e a não realização de alguns de nossos sonhos. Em outras palavras, em algum momento de nossas vidas iremos nos deparar com sofrimento. É inevitável. Eis a condição humana.

Kieran desqualifica clichês e sabedorias convencionais, como a de que "tudo ocorre por algum motivo", logo, se estamos sofrendo, "existiria alguma justificativa" para nossos males. De acordo com o autor, tais sentenças não nos ajudam. Kieran nos indica dois caminhos para lidar com o sofrimento. O primeiro é de que não deveríamos buscar a felicidade, mas viver bem. O segundo é que não estamos desconectados de tudo o que ocorre ao nosso redor. Fazemos parte de um todo, e quando conseguimos nos conectar com a realidade de outros, damos significado para nossa existência. 

O livro divide os males da condição humana em seis partes, cada uma sendo um capítulo. O primeiro discute nossa vulnerabilidade física. Apesar dos avanços estéticos, que retardam o envelhecimento (ou o mascaram), estamos destinados ao enfraquecimento corporal conforme os anos avançam. Perderemos gradualmente nossa força. Doenças surgirão. Nos tornaremos mais vulneráveis (pandemia da Covid-19 realçou esse ponto). Portanto, o envelhecimento é um dos aborrecimentos da vida humana, e não há como alterarmos o fato de ficarmos mais velhos. Todavia, há formas de lidar com ele. E essa é uma das conclusões do livro: não negar ou esconder a condição humana; mas assumi-la, e tentar viver bem em meio a ela - há várias formas de viver bem, de acordo com as particularidades de cada um.

A segunda agonia que nos atinge é a solidão. Somos seres sociais, inseridos em sociedades. Almejamos diálogos, interação, fazer parte de algo. Ter atenção - ser ouvido. Quando não conseguimos essas coisas, tendemos a sofrer suas consequências. Como afirmado pelo autor, nossa história é marcada pela dependência mútua. Não deveríamos acreditar que podemos viver completamente sozinhos.

O terceiro fator é o pesar, lamentar. Como consequência de nossa vulnerabilidade, perdemos seres queridos ao longo de nossas vidas. O sofrimento neste caso é inevitável. Kieran alarga esse eixo incluindo relacionamentos e amizades. Faz parte do viver bem apresentar momentos de tristeza. Kieran nos diz que nunca estamos errados quando lamentamos a perda de alguém, e que não existe solução permanente para o pesar. A saída é o auto conhecimento, a reflexão, para que possamos prosseguir com nossas vidas, apesar dessas cicatrizes que vamos ganhando. Temos de nos remendar. 

Fracasso é o quarto fator de sofrimento. Fazemos planos, sonhamos, imaginamos vários cenários. Mas na maioria das vezes a realidade nos derruba. Kieran aconselha a não construirmos nossas vidas como narrativas. Porque a vida é muito mais do que isso. Fracassos ocorrerão, mas são detalhes, o principal é saber viver em meio a eles. Dar a devida importância que merecem. 

A quinta fonte de agonia é a injustiça. Por onde olharmos, acharemos injustiça. Seja a desigualdade de renda, racial, de gênero, ou mesmo a injustiça que lemos em jornais em eventualidades da vida. Nesta semana, por exemplo, famílias em São Paulo perderam entes queridos por conta das chuvas e de infraestrutura inadequada (e de pobreza e por omissão das autoridades públicas). Elas mereciam isso? No Velho Continente, crianças são bombardeadas por causa do conflito entre Rússia e Ucrânia. Algumas pessoas se sentem infelizes em saber que esse tipo de injustiça ocorre diariamente. Como proceder? Kieran aconselha a solidariedade. Aqui ele desenvolve em maior profundidade a sua recomendação para fazermos parte de um todo. Quando tivemos um sofrimento no passado, e sentimos empatia por uma pessoa vivendo algo semelhante, temos aí um laço. Caso decidamos fortalecê-lo, abriremos a janela para dar um significado a nossas vidas. 

Dar um significado para nossas vidas é a última de nossas agonias, o que o autor denota como absurdo. Aqui Kieran realiza vasta discussão procurando chegar a um lugar sólido, mas não consegue. Considerei o tópico significado para nossas vidas como o ponto mais frágil da obra. O autor faz suas manobras, invoca filósofos, mas não fiquei convencido. Para ele, como escrevi anteriormente, ao fazermos parte do todo, criamos significado para nossas vidas. Continuo considerando que toda a vida humana é desprovida de um significado maior, e que como tal ausência é muito pesada para a maioria de nós, tendemos a criar e atribuir significados. Assim a vida fica mais leve. Um dos fatores para o sucesso da série Game of Thrones foi o tratamento da ausência de um significado maior para todos. Cada personagem cria sua própria narrativa, e a segue, utilizando-a para justificar suas vidas. Estes mesmos personagens ficam vazios quando não conseguem criar uma narrativa para gerar um significado. 

No final, Kieran discute a esperança. Ele refuta a ideia de que deveríamos buscar uma vida ideal. Deveríamos, pelo contrário, buscar o nosso próprio reconhecimento, nos entender, saber se levantar quando nos depararmos com uma das 6 fontes de sofrimento. Não negar a condição humana, vivê-la e contorná-la, para que possamos viver bem. Não necessariamente seremos felizes, mas poderemos ter uma vida satisfatória. 








4 comentários:

  1. A pergunta é, temos que ter algum significado na vida? Quem nos disse que a vida tem que ter um significado? Ela pode não ter significado nenhum.

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    1. De fato. Depende de cada pessoa assumir algum ou nenhum significado para suas vidas. Em meio a dificuldades e sofrimento, ter um significado pode ajudar - essa talvez tenha sido a intenção de Kieran ao discutir essa parte.

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  2. Talvez o ponto óbvio seja buscar um significado para a nossa vida. Porque o procuramos? Uma das respostas para tamanha angustia, talvez seja Deus! E não estamos de todo errado em acreditar nisso, apesar de muitos disserem o contrário. Algo nós diz que o caminho é individual e reflexivo nesse sentido e isso nós basta como consolo.

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    1. Por séculos, Deus foi a referência para a vida de milhares de pessoas. Como referência, ele também gerava significado e sentido para nossa existência - era como uma âncora que balizava nossas decisões. Mas a junção de alguns fatores, como o questionamento de tradições, o avanço tecnológico acelerado, e o próprio enfraquecimento da ideia de Deus, perdemos essa âncora para nos guiar. O livro fornece diretrizes para preencher esse vácuo.
      Por outro lado, para as pessoas religiosas, a ausência de sentido pode ser menos sentida, embora ainda possa estar presente, pois somos influenciados pelo ambiente que nos cerca.
      Sobre ser certo ou errado acreditar e seguir a Deus, minha opinião é que isso cabe a cada um. Se tal crença nos ajudar a sermos melhores pessoas e a superar (ou aceitar/lidar) os desafios cotidianos, esse ideal atingiu o seu objetivo.

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