segunda-feira, 28 de março de 2022

Resenha: O Mundo é Plano: Uma Breve História do Século XXI (Thomas L. Friedman)

Friedman detalha o novo mundo de crescente colaboração entre indivíduos

thomas friedman


Escolhi ler esse livro porque tive uma ótima experiência com Malu Gaspar em A Organização: A Odebrecht e o esquema de corrupção que chocou o mundo. Malu utilizou as diversas técnicas que aprendeu como jornalista: tornar o texto mais atrativo, fluente, aumentar a imersão do leitor. Nos livros que normalmente leio - a maioria das resenhas desse blog -, com forte teor técnico e teórico, não há essa preocupação. O foco recai no desenvolvimento e na argumentação de determinada teoria. Thomas Friedman segue o estilo de Malu Gaspar, e avança um pouco mais ao conceder espaço para teorização. Enquanto ambas as obras apresentam depoimentos de figuras importantes e centrais em relação ao tema, Friedman dedica páginas para a elaboração da teoria que fundamenta o seu livro. Sem dúvidas é um acréscimo que enriquece muito a obra. Infelizmente Malu não seguiu essa rota, o que poderia ter dado maior profundidade a seu livro - e o Brasil é cenário rico de teorias relativas à corrupção (patrimonialismo), como foi o caso da Odebrecht e o seu relacionamento com políticos, ministros e servidores públicos.

Outro interesse que eu tinha na obra era verificar como Friedman desenvolveria o tema globalização. Como disse anteriormente, livros teóricos seguem mais ou menos o mesmo script. Livros escritos por jornalistas focalizam em outros pontos. Já li diversos livros sobre globalização (recomendo esse aqui aos interessados no tema), mas nenhum apresentou os detalhes vistos na obra de Friedman. Em diferentes oportunidades, o autor detalha cada etapa de construção e prestação de serviços na cadeia de valor global (supply chain), entrevista os envolvidos, e visita fábricas e centros de fornecimento para melhorar ainda mais a sua descrição.

Esse nível de detalhes é bem vindo porque o objetivo principal do livro é mostrar que o mundo se tornou mais competitivo. Os avanços nas tecnologias de informação e comunicação permitiram que serviços antes prestados em apenas alguns países, como o telemarketing (lembre dos famosos call centers da Índia), se deslocassem para outros continentes. Friedman usa a palavra "nivelado" (leveled) para descrever esse processo. Programadores e engenheiros podem se arriscar a criar novos serviços, ferramentas, softwares. Estes não precisam estar empregados em uma empresa. Suas atividades podem ser feitas de forma remota. Em uma palavra, o livro é um retrato da difusão e conexão do conhecimento em torno do mundo. 

Publicado em 2005, a obra enfatizava movimentos que se tornariam tendência, influenciando até mesmo eleições e debates políticos. Multinacionais buscando novos países para realizarem suas atividades, a integração entre várias empresas para entregar o produto ao consumidor final (cadeias de valor), as crescentes digitalização, virtualização e automação, são processos documentados e interpretados como alavancas para a nivelação do mundo. Nivelação porque indivíduos de quaisquer partes do mundo podem competir em forma de quase ou mesmo completa igualdade, bastando possuírem computadores, internet e conhecimento técnico que atenda determinada demanda. 

O autor nos diz que estamos atualmente na globalização 3.0. A globalização 1.0 foi deflagrada pelas viagens marítimas encabeçadas por Cristóvão Colombo. A globalização 2.0, de 1800 a 2000, foi puxada pelas multinacionais, com o auxílio da queda dos custos de transportes e de comunicação. Finalmente, a globalização 3.0 é a que indivíduos se conectam para colaborarem. Veja que o objeto que serviu de força motriz em cada globalização foi se reduzindo em tamanho físico: enquanto na globalização 1.0 eram os países que representaram a força central, na globalização 2.0 tivemos as multinacionais; agora temos os indivíduos como elementos primordiais.

A queda das barreiras domésticas impulsiona o livre comércio. O próprio Friedman se autoproclama um grande defensor desse arranjo. Corretamente, afirma que o livre comércio possibilita ganhos mútuos, um jogo de win-win, no qual o pedaço do bolo de todos os países envolvidos se eleva, potencializando salários e remuneração dos trabalhadores. Como o aumento na colaboração entre pessoas de distintas localidades eleva a produtividade total - tanto pela exploração do potencial que cada indivíduo carrega, quanto pela diversificação de ideias, de prestação de serviços, de formas de operar -, os ganhos são maiores. 

Um importante marco nesse processo foi a queda do Muro de Berlim em 1989. Sua queda representou a entrada de 3 bilhões de pessoas que viviam nas sombras, especialmente de países como a China e a Índia. Estes 3 bilhões entraram no mercado de trabalho, se aproveitando da infraestrutura de banda larga, códigos de programação e da diversidade de conhecimento disponível na internet. Já ouviu falar sobre os asiáticos dominando conhecimentos matemáticos, estatísticos, de programação? E que estes estão cada vez mais sendo contratados remotamente para operarem em multinacionais que antes empregavam apenas a população local? Bem, são estes que Friedman descreve. Além de conseguirem apresentar nível de produção próximo (às vezes superior) ao dos trabalhadores de países ricos, aceitam salários muito mais modestos (lembre que o dólar geralmente vale muito em países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil). 

Apesar dessas vantagens, Friedman está consciente de que mudanças são necessárias para que países e governos consigam se adaptar nesse cenário. Uma de suas propostas é chamada de planismo compassivo (compassionate flatism) - estou receoso com essa tradução que fiz do termo, mas não tenho o livro em português. Portanto, recomendo se ater mais ao conteúdo do que à denominação. Essa proposta envolve a proteção do indivíduo, uma vez que a tendência é de maior rotação de empregos, bem como de empregos temporários. Nesse caso, governos poderiam aliviar a transição e perda de emprego com transferências de renda para indivíduos, incluindo planos de saúde. Políticos deveriam preparar a população com linguagem clara e transparente, expondo as dificuldades que estariam por vir. Outra ponto desse plano é a oferta de educação profissional para a população - educação condizente com a crescente digitalização e virtualização de empregos.

Analisando o porquê de alguns países não conseguirem se aproveitar da conjuntura de maior ampliação da colaboração (como o Brasil), Friedman oferece diretrizes de reformas macroeconômicas, microeconômicas e institucionais (no livro, utiliza os termos retail e wholesale reforms, mas a ideia é a mesma). A primeira etapa deveria consistir em abrir a economia ao comércio internacional, privatizar empresas ineficientes, desregular setores e atrair investimento privado. A segunda parte envolveria em melhorar a infraestrutura de tecnologia, a educação, a cultura, e as instituições regulatórias. Nesse caso, a intenção do autor é melhorar os incentivos individuais, reduzir a burocracia e facilitar o empreendedorismo das pessoas - embora não tenha usado o termo microeconômico, essas reformas impactariam essa área (para quem acompanha esse blog, veja novamente a palavra chave do desafio brasileiro: reformas...).

Se aproximando do final, Friedman elenca os desafios atuais. Ele aponta i) a população africana que sofre por parco nível de saúde; ii) os países pobres que não conseguem oferecer infraestrutura e educação mínima para que sua população, a qual se vê desempoderada, possa participar dessa rede de conhecimento e colaboração; iii) os frustrados, os quais se sentem humilhados ao contrastarem a situação de seus países com a dos EUA e Europa. Nesse grupo, Friedman coloca os terroristas, com destaque para o grupo Al-Qaeda (ataque sobre as torres gêmeas em 11 de setembro de 2001 ainda estava muito recente); iv) o desejo de praticamente toda a população mundial em ostentar nível de consumo próximo ao dos americanos ou europeus, o que aumentaria a pressão sobre o meio ambiente e os recursos naturais. 

Nietzsche dizia que o ressentimento era uma das principais forças que moviam as pessoas. Friedman utiliza o termo humilhação para descrever o surgimento de grupos terroristas. Afirma que a religião é apenas um pretexto para mascarar suas ações. De fato, pela discussão realizada nessa parte do livro, seu argumento ficou convincente. Concordo que entre os fatores que explicam a ascensão desses grupos, a humilhação seja um deles, apesar de não ser o único.

Durante o desenvolvimento do livro, o leitor terá contato com figuras famosas, como Bill Gates, Paul Romer (prêmio Nobel de economia em 2018), entre outros altos funcionários de empresas de destaque como a Google e a Yahoo!. Como jornalista, Friedman torna a leitura da obra muito prazerosa. E como eu disse no início, ele dedica boa parte em aprofundar a teoria, evitando que o livro se tornasse apenas uma coleção de fatos e curiosidades sobre a globalização. A mistura deu certo, dando origem a um livro instrutivo e agradável de ser lido.










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