segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Resenha: Fazendo o Gasto Social Funcionar (Peter Lindert)

Livro analisa os gastos em educação, saúde, previdência e em programas de combate à pobreza e avalia os seus méritos

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Fazendo o Gasto Social Funcionar (Making Social Spending Work, no original) é daqueles livros que oferecem um panorama geral de um tópico controverso. Reúne resultados de trabalhos empíricos e estatísticas de diversos países no esforço de construir um retrato, uma direção para a discussão. Nas discussões envolvendo o gasto social, sempre um assunto que coloca diferentes visões políticas em colisão, há a carência do tipo de trabalho ofertado por Peter Lindert. Finda a leitura desta obra, afirmo sem ressalvas de que este livro ajuda muito a iluminar a ausência deste tipo de estudo geral.

No início, o autor assinala que nós humanos sempre necessitamos de uma rede de segurança (safety net). O componente risco, de forma análoga, sempre nos acompanhou, em quaisquer eras e tempos. Na ausência do governo como provedor desta rede de segurança, recorríamos ao núcleo familiar e à caridade privada. Todavia, embora úteis para aliviar e ajudarmos em vicissitudes, estes arranjos não conseguiam cumprir o papel de amaciar de forma eficaz os golpes que o destino poderiam nos dar.

Foi preciso que os Estados ganhassem capacidade fiscal para financiar o gasto social, juntamente com vontade política, para que a rede de segurança se alastrasse por toda a sociedade. No caso da política, o livro apresenta alguns exemplos de países que negaram estes benefícios para os cidadãos. Em geral, autocracias e amplo domínio de elites tenderam a governar para pouquíssimas pessoas. Os ventos melhoraram para os indivíduos necessitados principalmente após pressão popular. Esta última informação é um lembrete ao livro de Acemoglu e Robinson, O Corredor Estreito, no qual é argumentado que a organização de parte da população para pleitear pautas é algo positivo nas sociedades, pois contribui para redistribuir parte do erário e gerar um país mais equitativo. 

Embora não seja o foco do livro, implicitamente há o argumento de que o regime político democrático, ao alastrar o voto para praticamente todos os cidadãos, empodera politicamente pessoas que, sem este regime, teriam pouca voz e influência na construção de políticas sociais. Consequentemente, democracias seriam uma forma de expandir o gasto social, com o Estado atendendo indivíduos de baixa renda. É um ponto sem dúvidas favorável à democracias, que por vezes sofre pela ausência de argumentos mais bem elaborados, ou então recebe apelos romantizados, distantes de uma melhor racionalização. Em resumo, quando grande parcela da população possui o direito de votar e, portanto, de escolher os seus políticos, estes últimos têm de olhar e atender algumas necessidades destas pessoas. O gasto social é uma forma de concretizar essa relação.

O gasto social pode ser dividido em duas partes: assistência social e seguro social. O primeiro se relaciona com a provisão de educação e saúde, enquanto o último pode ser visto como transferência de renda para mitigar momentos adversos, como a perda do emprego. Para este caso, temos o seguro desemprego, em vários países. De qualquer forma, o gasto social é primordialmente distribuído para a educação, a saúde, a previdência e programas para mitigar/minimizar a pobreza. O livro focaliza nestes 4 tipos de gasto.

Sem titubear e ancorado por ampla evidência empírica, o gasto social em educação e saúde é relacionado com maior crescimento da renda e de bem estar. O termo usado para compreender esta relação é externalidades. O gasto público em educação, por exemplo, extrapola a esfera unicamente educacional. Crianças bem educadas serão mais produtivas no futuro, mais politicamente conscientes, com menor risco de cometer crimes, entre outros benefícios. No longo prazo, o país mais do que compensa o gasto inicial nesta educação. O mesmo é válido para a área da saúde. Tanto a educação quanto a saúde são eixos críticos que ajudam a compreender a diferenciação entre economias ricas e pobres. 

Não basta somente despejar dinheiro na educação, o livro mostra que, dentro da educação, os retornos são maiores na educação básica. Curiosamente, economias em desenvolvimento (Brasil está neste grupo) tendem a investir mais na educação superior, dando menor importância às crianças. O resultado é menor expansão da renda. Por outro lado, países desenvolvidos investem mais não somente na educação básica, como também na faixa etária do nascer até os 4 anos, também conhecido como período de educação pré-básica. O Brasil peca por enfatizar a educação superior, mas não estamos sozinhos neste equívoco. Várias outras nações seguem o mesmo caminho.

Outra escolha com danos para o país é priorizar o gasto com pensões. Devido a uma gama de fatores como o envelhecimento populacional e a pressão de idosos sobre os políticos (em geral idosos conseguem se organizar bem e são bem-sucedidos em alocar verba pública para eles na forma de benefícios previdenciários), ao longo das décadas o gasto social em pensões tem se acelerado. Como o orçamento público é um bem escasso, como a maioria das coisas em nossas vidas (é difícil achar bens não escassos), o aumento da parcela direcionado às pensões representa menor alocação de gasto social em educação e saúde. Eis um dos principais debates que têm ocorrido e que continuarão a ocorrer nos próximos anos. Como falo com amigos e colegas, precisaremos de novas reformas previdenciárias para resolver esse impasse (na dúvida e na incerteza, a recomendação é criar um fundo e investir ao longo da vida para se prevenir). Novamente, não estamos sozinhos nesta: praticamente todo país tem esse problema.

O livro dedica algumas páginas para o Brasil, tamanho é o nosso gasto na previdência! Na comparação internacional, estamos entre os líderes em gasto previdenciário. E pensar que tantos brasileiros e partidos políticos se posicionaram contra a reforma previdenciária de 2019! Não vou me alongar neste ponto porque escrevi sobre ele neste texto aqui. Talvez a raiz desta questão seja o fato de que idosos votem, enquanto crianças não votam (outra curiosidade, vista tanto no Brasil quanto em outros países, é a de que militares geralmente conseguem abocanhar grande parte da previdência, fugindo de reformas e mantendo significativa parcela em seus bolsos. Por quê?). Sempre que defendemos o gasto público acima do nível das receitas, gerando novas dívidas e impostos futuros para pagá-las, estamos jogando a conta do gasto de hoje sobre a geração futura, as crianças de hoje, as quais não votam, não participam do debate para definir esta alocação intertemporal.

Ainda sobre o Brasil, somos elogiados quando o assunto são programas de combate à pobreza. O Bolsa-família foi um sucesso tanto nacional quanto internacional, sendo seguido por outros países. O detalhe é a exigência de vacinação, matrícula e frequência escolar das crianças. Por isso o termo transferência de renda condicional. Na medida em que os pais realizam essas exigências, estes recebem a renda. Há evidências mostrando que quando a transferência de renda é incondicional, isto é, sem nenhuma contrapartida com as crianças, o resultado tende a não ser muito positivo. 

Desta forma, discutido brevemente os 4 tipos de gasto social, surge a pergunta: o aumento do gasto social compromete o crescimento econômico? Segundo o livro, a resposta inicial é depende. Se considerarmos os gastos com educação, saúde e programas de combate à pobreza, a resposta é não. O aumento do gasto social nestes itens não prejudica o PIB. Entretanto, se mirarmos o gasto previdenciário, há fortes indícios de que o PIB sofra efeitos negativos. A justificativa é a mesma que escrevi anteriormente: gasto com saúde, educação e pobreza produzem externalidades positivas

Além deste núcleo de discussão, o livro apresenta direções com base na experiência internacional. Por exemplo, o autor recomenda a provisão universal de educação e saúde para a população, o foco no gasto nas crianças, e a eliminação da necessidade de estar empregado para receber alguns benefícios sociais - neste último caso, é um claro sinal de flexibilidade em decorrência às mudanças no mercado de trabalho, com empregos sendo gerados por aplicativos, abandonando o velho elo patrão e empregado. Nos primeiros capítulos Peter Lindert apresenta 10 fatos estilizados sobre o tema, os quais são interessantíssimos de serem lidos (alguns exigirão leituras de mais capítulos para melhor compreensão).

Como falei no início, a obra tem o mérito de resumir, agregar e comparar vários países e programas, gerando um retrato do gasto social e o seu efeito sobre economias. Pelo menos em debates, sinto que a discussão ainda é muito solta. Fazendo o Gasto Social Funcionar é uma bússola para melhorar o nível deste tópico. O leitor pode até discordar de alguns pontos, mas terá material de qualidade para montar suas críticas e refletir.












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