sábado, 7 de novembro de 2020

Resenha: Casa-Grande e Senzala (Gilberto Freyre)

Atuais divisões na população brasileira são heranças da cultura da Casa-grande?

Gilberto Freyre


Casa-Grande e Senzala: Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal é livro referência para os interessados em estudar nossas raízes históricas. Para aqueles que consideram significativo o nosso passado para entendermos nosso presente, essa obra é essencial para esse tipo de questão. 

O livro é desenvolvido partindo de dois eixos centrais. O primeiro é a descrição de que nossa colonização se pautou pela monocultura latifundiária e pelo sistema escravocrata. Portugal não se preocupou com a distribuição de terras ao delegar lotes e funções para alguns habitantes explorarem o território. Disso culminou enorme concentração territorial. 

Acoplado a isso, dada a dificuldade de conseguir converter índios para executarem funções laborais repetitivas, buscou-se o negro africano para servir de mão-de-obra, inserindo-o como escravo nos latifúndios. 

O livro se torna especialmente interessante ao apontar a fusão da cultura africana, trazida pelos negros, com a nativa dos indígenas. Vários elementos de vestimenta, de culinária, de comportamento, de crenças são elencados na discussão. Em meio a essa mescla havia o europeu com diferentes traços culturais. O resultado dessa interação é o brasileiro, caracterizado por apresentar diferentes traços culturais. 

Nesse ponto foi importante o comportamento dos portugueses. Em comparação com os demais europeus, Freyre nos diz que eles são mais maleáveis e plásticos, admitindo misturas com outras culturas, ao contrário de práticas que poderiam extirpar a cultura do povo dominado - o português já tinha um passado de convivência com a cultura árabe, os mouros. O português permitiu e difundiu a mistura de povos, gerando o brasileiro miscigenado. Alguns autores afirmam que é essa permissibilidade que propiciou um país sem profundos conflitos étnicos, apesar do passado escravocrata - o que não significa que negamos o racismo ainda existente, mas, em comparação, por exemplo, com os Estados Unidos, a situação aqui se resolveu de forma muito mais pacífica. 

O segundo eixo basilar do livro, servindo de título, é a separação entre Casa-Grande e Senzala. É a forma pela qual forjou-se o desenvolvimento do Brasil, com o poder político, econômico e social na Casa-grande, enquanto os escravos ficavam na senzala, desprovidos de direitos e sujeitos aos desmandos dos senhores: "A casa-grande, completada pela senzala, representa todo um sistema econômico, social, político: de produção (a monocultura latifundiária); de trabalho (a escravidão); de transporte (o carro de boi, o bangüê, a rede, o cavalo); de religião (o catolicismo de família, com capelão subordinado ao paterfamilias, culto dos mortos etc); de vida sexual e de família (o patriarcalismo polígamo); de higiene do corpo e da casa (o "tigre", a touceira de bananeira, o banho de rio, o banho de gamela, o banho de assento, o lavapés); de política (o compadrismo). Foi ainda fortaleza, banco, cemitério, hospedaria, escola, santa casa de misericórdia amparando os velhos e as viúvas, recolhendo órfãos". 

Casa-grande e senzala era um contraste de um mesmo povo. Um antagonismo de aceitos com relegados. Um núcleo que acarretaria profundas consequências sobre a teia da sociedade brasileira. A cultura de mandar, da casa-grande, acompanharia os seus descendentes mesmo após a abolição da escravidão (1888). O livro Raízes do Brasil, outra referência desse tópico, afirma que o morador da Casa-grande tratava empregos públicos da mesma forma que os senhores tratavam de seus negócios privados: privilégios para os amigos e relativos, negando-os para o restante. É a cultura do compadrismo mencionada na citação anterior. 

Os recentes episódios no Rio de Janeiro do engenheiro que se recusou em ser fiscalizado, em Santos, do desembargador que rasgou a multa, e ainda no interior de São Paulo, do homem que humilhou um entregador de comida revelam traços da cultura da Casa-Grande e Senzala sobre os dias atuais? Pessoas que se colocam acima de outras mostram o arquetípico do antigo senhor da Casa-grande? Para Gilberto Freyre, a resposta é positiva. A forma como socializamos e os antagonismos entre classes de renda devem ser explicados e entendidos pelo nosso passado colonial. 

O livro mostra que o brasileiro é um povo complexo, seja em termos culturais quanto de formação. No caso dessa última, é especialmente relevante considerarmos nosso passado para jogar alguma luz para as dificuldades atuais do país. Há crescente coro de que nossos políticos se importam pouco com a população, de que pautam suas decisões para benefício próprio. Em outras palavras, há confusão entre matéria pública e privada. Herança da Casa-grande, do compadrismo de Freyre? A resistência a reformas que diversos grupos da sociedade apresentam, temendo a perda do status quo, também tem raízes históricas? Casa grande e senzala pode ser um caminho para melhor compreender nosso país. 


PARA APROFUNDAR:

Há dois livros parecidos com esse, que se preocupam com o passado colonial do Brasil. Aqui e aqui



2 comentários:

  1. quais outros tipos de culturas havia naquela época tão sofrida?

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    1. Acredito que cada país tem sua própria cultura, às vezes com semelhanças com as de outras nações. Sobre a sua crítica (o seu comentário me pareceu irônico e sarcástico), o livro argumenta que uma das formas de compreender tanto a desigualdade brasileira, quanto a sua perpetuação, pode ser vista pela relação entre senhor e escravo. Um bom ponto é questionar o porquê do hiato entre essas partes, embora com diferentes denominações, se manteve ao longo do tempo, enquanto em outras sociedades a desigualdade foi reduzida - inclusive a forma de ver e julgar as parcelas mais pobres da sociedade. Interpreto esse livro como deixando uma questão em aberto: por que no Brasil a elite, os mais ricos, desprezam e fazem questão de demarcar os limites entre suas vidas e as de outras pessoas mais pobres? Ou ainda, por que nós, como sociedade, não conseguimos eliminar essa forma de distinção (ou mitigá-la)?

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