domingo, 9 de abril de 2023

Resenha: Ascensão e Queda da Ordem Neoliberal (Gary Gerstle)

Ataques sofridos pelo Neoliberalismo podem representar o surgimento de uma nova ordem

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Ascensão e Queda da Ordem Neoliberal discute o enfraquecimento do Neoliberalismo. Para isso, o autor remonta o período dos anos de 1930, quando outra ordem surgiu, impulsionada pelo New Deal, a política dos Estados Unidos (EUA) para superar a Grande Depressão de 1929. Por conta da caótica conjuntura econômica nos anos 1970-80, o New Deal cedeu espaço para o Neoliberalismo, o qual dominou o cenário de forma praticamente incontestável até um pouco depois da virada do novo milênio. Atualmente, o Neoliberalismo mostra fragilidades, sofrendo variadas críticas. Eventos internacionais reforçam essa transição, essa queda do Neoliberalismo. Gary Gerstle analisa todos esses acontecimentos no seu livro, voltado principalmente para a argumentação política, embora contenha elementos de economia e história. 

A Grande Depressão de 1929 foi uma crise que até hoje não foi esquecida. Por um lado, ela mostrou os limites da economia de mercado; de outro, evidenciou a necessidade do suporte de governos em reestabelecer os mercados. Mesmo nos anos seguintes à crise, a economia dos EUA não conseguia voltar ao seu dinamismo anterior. O presidente Franklin D. Roosevelt propôs o New Deal, conjunto de medidas, reformas e políticas que representaria uma guinada na forma de tratamento entre governo e mercados. 

O New Deal concedeu maiores poderes para os governos regularem a atividade econômica, tanto de forma direta (produção) quando indireta (impondo regras na produção). Outros traços foram o fortalecimento de sindicatos, regulamentações nos mercados financeiros e programas de redes de segurança. Neste último caso, outro termo usado para denotá-lo é Welfare State ou Estado de Bem Estar Social. Sua essência é a de que governos deveriam aliviar e suavizar momentos negativos na vida de indivíduos, como a perda de emprego. O Welfare State gerou a disseminação de programas públicos na educação, saúde, moradia e alimentação. Adicionalmente, havia um compromisso entre as classes (trabalhadores e empresários), com reajustes salariais crescentes e lucros moderados. Salários altos e lucros crescentes ocorriam, em parte, por conta do domínio quase irrestrito dos EUA na economia mundial.

Braço importante do New Deal foi o Keynesianismo. Este recomendava a utilização de políticas fiscal e monetária expansionistas para apoiar e sustentar o crescimento econômico. Assim, o gasto público se expandiu, com os bancos centrais reduzindo as taxas de juros. Hoje sabemos o resultado desse tipo de política aplicada de forma prolongada: inflação. A inflação que derrubaria o New Deal veio juntamente com os choques de petróleo da OPEP, nos anos de 1973 e 1979 (mesma estratégia seguida hoje por esse cartel: reduz-se a produção para subir o preço e elevar os seus lucros). Inaugurou-se a estagflação: crescimento estagnado com preços crescentes. 

A solução foi o Neoliberalismo. O New Deal durou de 1930 a 1970/80, tempo suficiente para enraizar vários de seus elementos nas economias. Desta forma, a missão inicial do Neoliberalismo foi desregulamentar mercados. Essa desregulamentação incluiu o comércio internacional, os mercados financeiros, e o mercado de trabalho. Consequentemente, os fluxos comerciais e financeiros se elevaram, a integração internacional entre nações se aprofundou, chegando ao conhecido termo cadeias de valor (supply chains). O Neoliberalismo também defendia o fluxo irrestrito de indivíduos. Portanto, movimentos migratórios também marcaram esse período. 

Parte da ascensão do Neoliberalismo adveio da percepção de que as políticas do New Deal não estavam funcionando. Pelo contrário, pareciam exacerbar o problema de estagnação. Mercados livres ofereciam uma alternativa política e factível.  

A evolução do Neoliberalismo (principalmente nos EUA - o livro enfatiza mais esse país) carregou 4 importantes características. A primeira foi a necessidade de ordem para que os mercados pudessem funcionar de forma adequada. Para impor ordem, governos e instituições são itens indispensáveis. Parte do esforço de imposição de ordem foi marcado pelo fortalecimento do militarismo. Os EUA se fortaleceram para expandir os mercados externos e levar capitalismo e Neoliberalismo para terras distantes. Domesticamente, o militarismo se traduziu no encarceramento em massa da população, especialmente de partes vulneráveis da sociedade, como os negros - viés que cobraria um preço alto no futuro. Já temos duas características (ordem e militarismo). A próxima foi o desmonte de sindicatos, eliminando o comprometimento entre as classes - e provavelmente aprofundando a piora na desigualdade de renda. Esse desmonte decorreu da maior competição internacional. Enquanto no New Deal os EUA reinavam de forma soberana nos mercados internacionais, suas multinacionais agora enfrentavam outras grandes empresas japonesas e europeias. O lucro se reduziu. Como manter salários reais crescentes? Não tinha como. Assim, na visão de Gary Gerstle, os trabalhadores foram a parte que saiu perdendo. 

A última característica do Neoliberalismo me lembrou o excelente livro de Branko Milanovic, Capitalismo Sem Rivais: O Futuro do Sistema que Domina o Mundo (resenha aqui). Branko afirmou que, ainda que empresas deixem de existir, o capitalismo continuaria vivo, pois nós, indivíduos, nos portamos como uma pequena empresa. Quase todas nossas ações são pautadas pelo custo e benefício financeiro. Pensamos em investir em nós mesmos para colher maior rendimento no futuro. Esse cálculo adentrou esferas não econômicas, como famílias, casamentos e educação. Gary segue caminho parecido, argumentando que esse tratamento do indivíduo com ele mesmo (capital humano) ampliou ainda mais as possibilidades de lucro do capitalismo. Pondé argumenta que nos tornamos startups: lutamos para elevar nossas receitas, reinvestimos parte delas em nós, projetamos lucros futuros, controlamos nossas despesas - e buscamos amizades com o intuito de ampliar nosso networking, para que nossa pequena empresa (nós) consiga melhores oportunidades.

Mas o Neoliberalismo também trouxe problemas, alguns deles críticos. Um dos principais é a desigualdade de renda que se elevou significativamente nos EUA. Muitas pessoas ficaram para trás. Há descontentamento em vários cantos do país. Enquanto isso, Wall Street acumula ainda mais capital. Na crise financeira de 2007, a classe média perdeu casas, ao passo que bancos foram resgatados pelo governo (e alguns diretores e CEOs abocanhando bônus gigantescos). Outro problema foi o encarceramento da população mais vulnerável e todo o passado marcado por fortes tensões raciais.  

Tivemos uma sucessão de eventos que sugeriam tanto o descontentamento quanto rupturas com a ordem Neoliberal. Alguns deles são a ascensão de Donald Trump, marcada por discursos contrários à globalização, com forte populismo e nacionalismo; fortalecimento do socialista Bernie Sanders, evidenciando a esquerda socialista dos EUA; críticas às políticas de imigração e de livre comércio; derrocadas (ou maior fragilidade) de democracias; aumento do autoritarismo carregado de nacionalismo; movimentos como o Occupy Wall Street (contra os lucros de Wall Street), o Tea Party (contra os imigrantes e pleiteando proteção para os "verdadeiros cidadãos"), o Precariat (trabalhadores contestando os novos empregos por aplicativos, com insuficiente proteção do governo), e talvez o mais explosivo, o Black Lives Matter; e gritos de que a sociedade é dividida entre os 99% e o 1%.

É importante ressaltar que o autor não nos conta como será essa nova ordem. Ele não arrisca tanto. Apenas mostra evidências de ruptura. Gritos nacionalistas, populistas e autoritários não condizem com o Neoliberalismo; tampouco críticas ao livre movimento de capitais, de mercadorias e de pessoas. Portanto, o Neoliberalismo tem sido questionado, com ataques sobre seus pontos centrais. 

Ao contrário de outros livros de política (e de história) que li, Gary não comete muitas vezes o equívoco em achar causalidade entre políticas econômicas e crescimento (lembro de apenas um, quando ele relacionou o ajuste fiscal de Bill Clinton com maior crescimento do PIB). Exceto essa pequena observação, a narrativa é fluida e agradável. 

Um ponto que me incomodou é que, embora tenha se colocado na maior parte das vezes como imparcial, Gary se mostrou um democrata, defensor do New Deal e de suas ramificações. A consequência disso é que a análise se torna um pouco viesada (tentei mostrar isso nesta resenha, com a discussão quase inteira baseada nos argumentos do autor). Mas esse viés não é tão forte. Assim, não atrapalha a leitura - fica a cargo do leitor tomar o devido cuidado.

Por fim, Ascensão e Queda da Ordem Neoliberal é um bom livro para compreender a evolução da política e economia nos últimos 100 anos, com bons desenvolvimento, estruturação e discussão. Talvez Gary esteja correto e estejamos vivenciando a ruptura do Neoliberalismo e adentrando em uma nova ordem, a qual ainda não se concretizou por completo.  








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