quarta-feira, 26 de abril de 2023

Resenha: O Mito da Felicidade (Jennifer Michael Hecht)

Como ser feliz no século XXI?

dinheiro, drogas, filósofos


Jennifer Michael Hecht assumiu uma tarefa difícil: discutir um tema amplo, abstrato e suscetível de alterações ao longo do tempo. Finda a minha leitura, posso dizer que a sua missão foi bem cumprida. Dois sustentáculos foram fundamentais para o êxito da obra. O primeiro foi a abordagem histórica, vasculhando no passado como os antigos tratavam o tópico felicidade. A segunda, que deixou a obra muito mais interessante, foi a discussão filosófica de felicidade. Aqui Jennifer mostrou grande riqueza ao revisitar autores famosos, como Sócrates, Platão, Cícero, imperadores romanos, Nietzsche, e autores de livros consagrados. A estratégia funcionou.

A mensagem principal do livro é a de que felicidade é algo subjetivo. Por mais que sejamos bombardeados por livros e frases sobre como encontrar a felicidade (ou o sucesso!), a felicidade de cada um repousa no seu próprio mundo interior. A variedade é tamanha entre valores e desejos pessoais que resumir o que nos torna felizes pode nos induzir a erros. Todavia, há fatores-chave que afetam a felicidade. A autora discute vastamente a influência de drogas, nosso corpo, celebrações e dinheiro em nossas vidas. 

Em relação às drogas, em especial aquelas que alteram nosso humor, Jennifer mostra que no passado era normal a utilização delas, inclusive por celebridades políticas. A cocaína, por exemplo, popularizada pela coca cola, era aceitável até o século passado, quando passou a ser criticada e proibida. Nessas discussões, o livro não defende que deveríamos usar esse tipo de droga, mas evidencia como o que é certo ou errado para ter uma boa vida se alterou. Mais do que isso, a autora argumenta que deveríamos ter uma cabeça e mente abertas para novas experiências (ok, talvez ela defenda em algumas partes o uso de drogas recreativas). 

O padrão de vida ideal e, portanto, feliz, se altera conforme a época e a cultura vigente. Atualmente, somente drogas prescritas podem ser administradas, temos de buscar o corpo ideal (e nesse caso, para as mulheres, há enorme pressão para que sejam finas, criando fonte de ansiedade e transtornos), e temos de ser uma máquina de produtividade. A respeito da produtividade, Jennifer afirma que somente nos tempos atuais há o nexo entre produtividade e felicidade, em parte como uma consequência do mundo capitalista e consumista em que vivemos. 

Uma vez reconhecido que o padrão de felicidade se altera de acordo com a época e a cultura, como poderíamos desvencilhar desta influência? Jennifer oferece dois blocos de dicas. O primeiro segrega a felicidade em 3 partes, enquanto o segundo extrai lições comuns dos filósofos. A autora contextualiza todos esses pontos, discutindo-os e debatendo-os, citando vários autores - como disse, um dos pontos fortes do livro (fui influenciado a tal ponto que comprei o livro Meditações, de Marco Aurélio, o imperador romano que também era filósofo). 

Começando pelo primeiro bloco, a felicidade pode ser destrinchada em 3 felicidades. A primeira é a felicidade de um bom dia (fazer pequenas coisas que tragam prazer, como comer algo saboroso, assistir série, dar uma volta na cidade, encontrar amigos), a segunda é a felicidade eufórica (festas regadas a bebida, uso de drogas, ir a shows) e a felicidade de uma vida feliz (ter um bom emprego, ser capaz de viajar, comprar casa, carro, outros bens, ter uma família, perspectiva de crescer profissionalmente). Quase todo discurso de felicidade enfatiza somente a felicidade de uma vida feliz. Todavia, essa última felicidade envolve muitas renúncias, muito estudo e trabalho, dedicação, disciplina. As outras duas felicidades poderiam ser usadas, com moderação, para amaciar essa jornada. Jennifer considera que todos precisamos de um pouco dessas 3 felicidades. 

O segundo bloco resume 4 dicas dos filósofos para uma vida feliz. A primeira é para nos conhecermos. Na medida em que sabemos de nossos objetivos, das influências, o que nos agrada e desagrada, nos tornamos mais ativos em ter uma vida melhor. O segundo é ter auto controle, saber se moderar em diversas situações. Um exemplo são as 3 felicidades mencionadas. Se exagerarmos nas duas primeiras, dificilmente conseguiremos ter uma vida feliz. A terceira é aceitar o que é nosso (take what's yours, no original - não estou muito confiante na minha tradução). A vida é cheia de possibilidades (citando o anão de Game of Thrones, Tyrion Lannister). Podemos nos engajar em vários pontos dela, mas deveríamos tomar cuidado para não cairmos em ansiedade e obsessão com as diversas tarefas. Perder e abandonar projetos também é uma forma de avançarmos em nossas vidas, desde que saibamos para onde estamos indo (conheça a si mesmo, ponto 1). Finalmente, o último é para lembrarmos da morte, destino final de todos nós. Neste caso, o conselho é para, sabendo que teremos um fim, direcionar nossa atenção, vida e felicidade para o que realmente consideramos valoroso. 

A autora também arrisca alguns pitacos para levarmos uma vida melhor. Um deles é para participarmos de eventos públicos, como marchas, festas e protestos. Como tendemos a viver sozinhos, o sentimento de comunidade e pertencimento se reduziu, nos deixando sozinhos. Jennifer defende que eventos públicos resgatam o que a sociedade atual tem nos tirado. 

Além de alguns conselhos, o livro também derruba alguns mitos, como o de que dinheiro não traz felicidade. Ele traz, nos diz Jennifer. Ela até cita alguns trabalhos de economia comportamental, mas não dá muito crédito a eles (isso me fez ficar um pouco cético com a autora, pois ela também desqualifica outros resultados científicos). O seu argumento segue as linhas das dicas de felicidade: não deveríamos nos limitar somente porque a cultura e outras pessoas afirmam algo. Neste sentido, o livro tenta nos libertar de algumas barreiras impostas pela cultura, que podem colidir com nossa felicidade. 

Jennifer conseguiu formar um livro coerente e bem desenvolvido sobre um tema muito amplo. Sua estratégia funcionou, ao utilizar a história e a filosofia como ferramentas para esmiuçar o tema felicidade. Há pontos que podemos discordar, mas vejo como normal, dada a subjetividade e amplitude do que é felicidade. 







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