Resenha: Carnavais, Malandros e Heróis (Roberto DaMatta)

Autor explica o Brasil utilizando eventos populares como arcabouço

O livro Carnavais, Malandros e Heróis é considerado um clássico entre as obras que se propõem a explicar o Brasil. Roberto DaMatta estuda eventos populares no país, como o Carnaval, e os contextualizam com a sociedade que serve de palco. Partindo da análise desses episódios, o autor desmascara uma sociedade profundamente hierarquizada, a qual busca, ao mesmo tempo, atingir a igualdade perante a lei. Objetivo conflituoso e paradoxal de se atingir, dando origem a novos personagens sociais. 

A análise de carnavais, procissões e paradas militares mostra que o Brasil apresenta uma estrutura dual: temos uma esfera impessoal, marcada pelo mercado de trabalho, o ambiente fora de casa, e as relações pessoais, de privilégios. No Estado de direito idealizado por autores ocidentais, todavia, a lei deveria prevalecer independentemente da origem, cargo, nome e profissão do indivíduo. DaMatta mostra diversos momentos nos quais confundimos a lei impessoal com o tratamento pessoal. Esse raciocínio é muito bem resumido pela famosa frase: "Aos inimigos, a lei; aos amigos, tudo".

Parte do livro se dedicará a entender a infeliz, mas presente expressão no nosso dia-a-dia: "sabe com quem está falando?". Essa expressão serve para lembrar outros indivíduos sobre a posição social de quem emite a sentença. Recentemente, no Rio de Janeiro, o caso de pessoas que se recusaram a serem abordadas por fiscais da saúde, ou o de São Paulo, do desembargador que rasgou a multa recebida, evidenciam esse tipo de tensão. O leitor, por certo, lembrará de outros tantos casos que já presenciou, e que remetem a esse dilema. 

Essa frase não somente funciona para mostrar uma hierarquia invisível, como também para ressaltar o "direito" a privilégios. Nos exemplos do parágrafo anterior, seria o "direito" de ignorar procedimentos de segurança contra a Covid-19 e o de não ser multado. A contradição emerge porque vivemos - teoricamente - em um Estado de direito, no qual a lei é construída visando ser aplicada de forma homogênea, isto é, para todos cidadãos, sem exceções. 

Coloco essa estrutura dual como ponto forte do livro, tanto pelo seu reconhecimento como pela forma em que foi tratada. As análises passando por livros populares, como "A hora e a vez de Augusto Matraga", por filmes, como o Conde de Monte Cristo, por exemplos da nossa vida, e por eventos (carnavais) ajudam bastante na construção do argumento, além de enriquecerem a obra. 

A figura do malandro surge para lidar com essa estrutura, como uma válvula de escape. O malandro está entre a estrutura dual, no meio do sistema hierárquico latente e da impessoalidade da lei. Ele utiliza de variados subterfúgios para obter sucesso em suas empreitadas. Dessa forma, o malandro recusa parcialmente a ordem estabelecida, mas ainda a segue. Embora não dado o exemplo no livro, temos exemplos do malandro no futebol, o jogador que tenta ludibriar o árbitro para obter uma vantagem. Por vezes esse tipo de comportamento é elogiado por comentaristas e pelo público. 

Traço negativo do livro é a forma como ele interpreta o funcionamento da economia. Implicitamente há a sugestão de que o mercado de trabalho funciona apenas para explorar os brasileiros de baixa condição social. Patrões são vistos como oportunistas e aproveitadores - essa visão é reforçada pelos livros literários utilizados para embasar o argumento. Em resumo, teríamos uma dicotomia entre os malvados (patrões) e os bonzinhos (trabalhadores pobres). Embora a obra mostre acerto na análise social do brasileiro e do Brasil, na parte econômica ela deixa a desejar. Felizmente, porém, o autor recorreu à esfera econômica poucas vezes, não comprometendo o conteúdo do livro. 

Comparando com os clássicos Raízes do Brasil e Casa-grande e Senzala, Carnavais, Malandros e Heróis é bem sucedido em seu objetivo. Consegue de forma didática e clara construir o brasileiro e mostrar os dilemas que o mesmo enfrenta. A estrutura dual e a forma como ele reage a ela também merece nota. Ao contrário dos dois clássicos acima, esse livro é mais fluente, de leitura mais agradável, e me arrisco a dizer que ele consegue explicar melhor o Brasil. Obra recomendada para quem busca compreender melhor o país no qual vive.