domingo, 19 de novembro de 2023

O Dinheiro e o Desejo

E suas armadilhas

dinheiro capitalismo


No último sábado, eu terminei de ler o quadragésimo primeiro livro do ano (minha média anual de livros lidos fica entre 40 e 50), Madame Bovary, de Gustave Flaubert. É um drama que ocorre no século XIX, quando as mulheres tinham baixa participação na vida social. Isso é retratado pela protagonista Emma Bovary, em suas angústias e desejos de ascender socialmente. Emma, em alguns momentos, me lembrou a também protagonista Scarlett na obra E o Vento Levou. Uma diferença é que a última obra foi escrita no século XX, portanto, as mulheres tinham maior participação na sociedade produtiva do que no tempo de Emma. 

Uma grata surpresa foi perceber que Madame Bovary vai muito além de uma obra com bom enredo. O autor detalha aspectos culturais e psicológicos dos personagens. Há sempre uma leve ironia e crítica na forma como eles interagem. E outra surpresa foi o papel do dinheiro na evolução da drama. Flaubert sempre coloca o cálculo econômico, senão como principal fator determinante de ações, como uma influência pervasiva e constante. 

Por exemplo (alerta de spoiler), o primeiro caso extra-conjugal de Emma foi em parte quebrado por conta das altas despesas que implicaria uma vida fugitiva entre ela e o seu amado. Lembre-se que as mulheres no século XIX, em geral, não geravam entrada de caixa para as residências. Faziam o trabalho "invisível", termo muito feliz apresentado pelo Enem, mas eram raros os casos de mulheres trabalhando e recebendo salários. E Emma não apresentava inclinação para a vida de labuta: vivia desejando luxos, aventuras e diversão, pouco se preocupando como financiar tais empreendimentos. 

Na segunda parte da obra (mais spoiler), Emma se endivida com o emprestador/agiota/lojista Lheureux para pagar parte de seus luxos e extravagâncias. Lheureux se aproveita da ingenuidade da moça, empurrando empréstimos com prazos curtos e com elevada taxa de juros. Emma precifica demasiadamente o presente, o consumo presente (sociedades que apresentam eses tipo de preferência tendem a ter taxas de juros maiores - uma das explicações para o nível dos juros no Brasil). Lheureux é o negociante desonesto e ardiloso, pois, se todas as suas ações têm o manto da legalidade e respaldo do Estado de Direito, elas ocorrem levando vantagem da outra parte desinformada. Na Ciência Econômica, o termo é informação assimétrica. Emma pouco sabe do que está fazendo. Acredita nas palavras do negociante. Há completa ausência de educação financeira. Nenhum sistema econômico consegue funcionar adequadamente desta forma. 

Isso me lembrou a Crise Financeira de 2007 nos Estados Unidos, quando o mercado hipotecário subprime, de ativos de alto risco, colapsou. Parte do colapso decorreu da ausência de educação financeira e informação por parte dos devedores (muitos negros, latinos e imigrantes), e a "esperteza" dos credores, que empurraram empréstimos arriscados para esse segmento da população. Os primeiros assinaram e ficaram felizes com a aquisição da casa. Os segundos, mais felizes ainda, pois ganhariam comissões e rendimentos provenientes dos juros. Novamente: economias de mercado não conseguem funcionar por muito tempo com esse tipo de transação, com disparidade na informação e educação financeira. O resultado foi a última grande crise financeira que testemunhamos.

Aqui o problema não é do sistema econômico (usualmente chamado de capitalismo - eu particularmente não gosto desse termo, e sempre o evito). O problema é a ausência de escrúpulos, moralidade, e respeito das partes envolvidas. Os conservadores usam o termpo responsabilidade individual. Quaisquer sistemas econômicos terão problemas enquanto essas diferenças existirem. Noto uma confusão entre críticos do "capitalismo", quando afirmam que nesse sistema os empresários exploram trabalhadores, ou, o que é pior ainda, o capital explora o trabalho (como se o capital fosse algo vivo!). A raiz é a informação assimétrica!

A ânsia de Emma em ter uma vida de luxo e sua insatisfação com a vida atual fornece reflexões. Seu marido, Charles Bovary, pessoa simples e trabalhadora, é satisfeito com a vida conjugal, amando a esposa e o padrão de consumo que desfruta. Emma se perde no desejo de elevar o seu consumo, ao passo que Charles encontrou um ponto de satisfação. A conclusão é que não precisamos, necessariamente, de elevar o consumo para estarmos satisfeitos conosco. Pode ser que consumir mais ajude algumas pessoas a se sentirem bem. E isso está ok! Nada de errado em desejar comprar mais! Somos seres com tantas particularidades, que é impossível criar uma regra neste tópico. Entretanto, vejo como problemático indivíduos que sempre aumentam o consumo tão logo suas rendas cresçam, de modo que em pouco tempo voltam a reclamar de falta de dinheiro e apresentar humor oscilante por conta disso (a tal da ansiedade financeira). Neste caso, desejos crescentes estão minando a saúde mental (e talvez física). E confie (apesar de minha pouca idade - 34 anos - para dar conselhos sábios), sempre perderemos essa corrida contra o consumo, pois sempre surgirão novos bens, novidades, promessas, mas nossas rendas não aumentam nesse ritmo.

Madame Bovary mostra que o cálculo econômico, a preocupação com nosso consumo e nossa renda, sempre nos persegue. Por vezes, é algo que incomoda, pois está sempre ali. Temos de aprender a lidar e viver com isso. Caso contrário, pode se tornar uma fonte de ansiedade e frustração. No tempo de Bovary já ocorria o descasamento entre desejos de compras e renda insuficiente. Hoje, com a digitalização do marketing, somos bombardeados com produtos e ofertas; muitos prometem "felicidade", ou, o que é o caso de pacotes de viagem e turismo, "experiência" de vida. Atrelar o consumo com ganho de experiência de vida foi uma jogada acertada do marketing: conseguiu transformar o consumo em algo além da mera aquisição de bens e serviços. 

Resgatando os críticos do "capitalismo", há também acusações de que o capitalismo introduziu o cálculo econômico em nossas vidas. Ora, ele sempre existiu! Para ajudar no argumento, lembre de sociedades sem moeda, puramente de escambo. Todas atividades precisavam de produtos para ocorrerem. Se você fosse fazer uma viagem, teria de preparar provisões. Hoje, com a moeda, precisamos apenas de poupar fundos. A essência é a mesma: praticamente toda ação/desejo precisa de bens para ser efetuada. Antes utilizávamos produtos físicos, hoje é a moeda em nossas contas virtuais. 

Finalmente, a última reflexão que faço é que (spoiler!), como interpreto os acontecimentos mundanos, assim parece ser a obra de Flaubert. No final, tanto o negociante aproveitador quanto o farmacêutico com várias falhas de caráter terminam "bem". Bem aqui é a ascensão social tão almejada pelo farmacêutico e a elevação de capital e de riqueza de Lheureux após explorar a ingênua Emma. O marido de Emma, Charles Bovary, trabalhador, respeitador e honesto, termina muito mal - além das traições que teve e que nunca desconfiou. 

Meu ponto é que não necessariamente o "bom" moço terá um final feliz. Não acho que a vida terrestre tenha um destino predeterminado: são acontecimentos mais ou menos aleatórios que confluem para formar um resultado. Há quem diga que caminhamos sempre em direção ao progresso. Pelo menos no campo econômico, isso é verdade somente nos últimos 300 anos. Antes da Revolução Industrial, não havia o progresso econômico como destino. 

O final do livro me lembrou outra grande obra, 1984, de George Orwell (spoiler). No final da obra, o seu protagonista é traído e torturado por um suposto aliado na sua desejada revolução. Lembro ainda hoje quando, um pouco desanimado com o desfecho, relatei esse final para um colega de trabalho. Este me respondeu que assim é a natureza humana: muitos valem muito pouco. Madame Bovary segue esse fio, em uma estória com ingênuos, honestos e desonestos. Os últimos saíram claramente vitoriosos. O contrário poderia ocorrer! Minha interpretação é que não acho que exista uma relação intrínseca e determinante entre tipos de pessoas e como sairão no final. Uma dificuldade é saber o que é "bom". A sociedade atual (e um pouco passada) coloca enorme peso na riqueza financeira. Isso seria o final bom? Acumular vasta quantia monetária? Eu penso que não.

Em resumo, Madame Bovary foi uma boa surpresa em minhas leituras noturnas, apresentando obra rica em conceitos e traços psicológicos em personagens complexos. Além de tudo, ainda fornece lições, aprendizagens e reflexões - bônus que ganhamos ao lermos obras clássicas e atemporais. 





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