domingo, 26 de novembro de 2023

Resenha: A Era do Capitalismo de Vigilância (Shoshana Zuboff)

Nova etapa do capitalismo poderia facilitar a ascensão de ditaduras

ditadura reino digital


Shoshana Zuboff se imbuiu de realizar um grande projeto: apresentar e descrever a nova etapa do capitalismo, o capitalismo de vigilância. As tecnologias digitais e redes sociais figurariam entre os principais personagens desta etapa, com nós seres humanos fornecendo matéria prima na forma de dados, os quais seriam convertidos em produto monetizado para terceiros. Sem dúvidas, o objetivo do livro é ambicioso. 

De acordo com a autora, vivemos no reino digital. Essa é uma das principais diferenças de nossa época com o passado recente. Atividades diárias e simples tendem a ser realizadas através de mídias digitais. Por exemplo, hoje de manhã eu verifiquei minha fatura do cartão de crédito utilizando meu smartphone. No passado, verificações desse tipo demandariam a ida até uma agência. Verificar o saldo da conta corrente? Uma ida até o banco. Comunicação profissional pode ocorrer por emails e mensagens instantâneas. E assim temos nossa vida física auxiliada pelo reino digital. Zuboff reconhece que há benefícios nesta interação, embora ela dedique escassas páginas a elucidá-los (um dos pontos fracos da obra). O foco do livro, todavia, é nas consequências negativas, especialmente a ansiedade, perigo e violência gerados pelo aprofundamento do reino digital.

Ela cunha o termo Capitalismo de Vigilância para avançar sua teoria. Neste tipo de capitalismo, grandes empresas, especialmente a Google e a Meta (antigo Facebook), coletam dados de nossas vidas e os utilizam para fins monetários. O lado pernicioso decorre de que esses dados também podem ser usados tanto para nos controlar quanto para eliminar nossa privacidade - com ou sem o nosso consenso. 

O controle seria para moldar nosso comportamento futuro, de forma a potencializar as vendas de produtos de acordo com o marketing. Subsequentemente, como empresas são entidades abstratas, em última instância controladas por indivíduos, tanto a Google quanto a Meta poderiam intervir no desenvolvimento de sociedades. Testemunhamos esse efeito nas eleições. Descobrimos, para horror de muitos, que somos facilmente manipulados e direcionados - fake news é uma das ferramentas. Portanto, poucas pessoas, por meio da coleta de dados, pelo gerenciamento destes dados, poderiam decidir nosso futuro. 

O passo seguinte poderia ser a ascensão do totalitarismo. Não da forma como vimos no passado. Aqui a obra cita George Orwell, o autor do clássico 1984, livro que retrata uma sociedade refém do Big Brother, aquele que tudo vê. Em 1984, e em ditaduras passadas, o ditador tenta ter o controle das pessoas por meio da coerção, violência e leis. O importante a notar é que toda essa parafernália é implementada por meios físicos. Entretanto, no reino digital, abre-se espaço para a utilização de tecnologia digital para atingir esse fim. Se empresas possuem todos os dados e informações privadas, esse conjunto de dados por ser usado para nos fiscalizar e supervisionar e, portanto, nos controlar. Novamente em 1984, cada casa tinha uma TV na qual as pessoas eram vigiadas. Esse é o início do reino digital nos controlando. 

Uma das melhores partes do livro é a discussão da forma como redes sociais são construídas. Para conseguir crescente engajamento e usuários, essas redes utilizam técnicas de imersão que afetam nosso comportamento. Redes sociais oferecem recompensas como aceitação, reconhecimento, pertencimento e inclusão. Mas há o custo. Tendemos a ficar cada vez mais ansiosos e dependentes com essas recompensas. A mesma mão que alivia o mal-estar nos torna mais dependentes dele. Para muitos analistas, o ambiente da rede social é tóxico. Há imensa e constante comparação social. 

As maiores vítimas são os jovens, mais vulneráveis a essa influência. Trabalhos sobre o tema mostram que os adolescentes de hoje passam praticamente o dia inteiro online. Estar offline é perder as mais recentes novidades. A utilização das redes sociais (e o recebimento de curtidas) produz efeito parecido com o da dopamina. Nosso corpo se torna dependente do feedback de outros usuários. Assim, há uma vida virtual. E como fica a vida real, fora das telas? Todo esse arcabouço, segundo a autora, decorre do esforço das empresas em coletar dados para maximizar a potência do marketing: quanto melhores os dados, mais eficaz se torna conectar compradores com produtos sendo ofertados.

Uma das explicações do porquê dos jovens de hoje serem as maiores vítimas é que eles nasceram neste ambiente digital. A geração anterior (eu incluso), por outro lado, nasceu fora deste mundo virtual. Vivemos, desta forma, dois cenários: pré-mundo digital e pós-mundo digital. Essa dicotomia alivia um pouco a dependência com as redes sociais, embora não a elimine. Fica a dica: o mundo fora das telas é mais legal.  

O capitalismo industrial, aquele desde o século XIX, com início na Inglaterra com a revolução industrial, precisou utilizar a natureza para avançar. A consequência é a mudança climática, com consequências cada vez mais óbvias. O capitalismo de vigilância difere do capitalismo industrial por se apropriar da natureza humana, no intuito de moldar nosso comportamento futuro. As consequências estão surgindo, como crescentes níveis de ansiedade, depressão, insatisfação...

Finalmente, no final da obra, Zuboff nos diz que a política deve se reinventar para conseguir lidar com o reino mundial. É o mesmo argumento da obra de Acemoglu e Johnson, Poder e Progresso. A sociedade civil, com dispositivos institucionais, deve se mobilizar para mitigar as consequências negativas do reino digital, ao mesmo tempo permitindo o desenvolvimento das tecnologias digitais. Não há determinismo no progresso digital. Este pode ser moldado para conjugar bem estar da população com o lucro das empresas digitais - e evitar a degeneração de sociedades em ditaturas. 

Embora a obra seja bem vinda em mostrar e discutir potenciais efeitos deletérios do reino digital, me pareceu exagerado o teor da discussão, muitas vezes com conotação apocalíptica. Em primeiro lugar, o mundo digital veio para contribuir com nossas vidas. Basta verificar as comodidades que temos, como ampliação da comunicação, informação e entretenimento. Várias tarefas se tornaram mais fáceis de serem verificadas. O livro peca em omitir uma discussão sobre o efeito positivo do reino digital em nossas vidas. Focou apenas no lado ruim.

Em segundo lugar, toda empresa precisa lucrar para sobreviver. E assim as grandes, como Google e Meta, tentam fazer. Elas ofertam serviços grátis, o motor de busca, Gmail, e Facebook, e em troca usam nossas informações para venderem anúncios. A coleta de dados melhorou algo que sempre existiu no "capitalismo", o marketing. Com o marketing fortalecido com nossos dados, empresas conseguem identificar com maior precisão potenciais clientes. E assim recebemos ofertas personalizadas. Goste ou não, o marketing sempre existiu. O Reino digital ajudou a melhorá-lo, no sentido de achar clientes. Não vejo mal nisso. 

Em terceiro lugar, a discussão da evolução e estratégia dessas empresas ficou um pouco personalizada, algo não recomendado em textos técnicos. Aqui eu lembrei de Olavo de Carvalho, o qual citava alguns indivíduos e levava a discussão para o lado pessoal, descaracterizando a leitura - e a empobrecendo. Zuboff caiu nesse erro. Fundadores da Google, Mark Zuckerberg, a CEO da Microsoft, são tratados como os "malvados" de uma possível trama para dominar o mundo. É como se existisse os "bonzinhos" e os "malvados". Não gostei da forma como a autora fez essa discussão. O recomendado é descrever e analisar, sem utilizar de moralidade e julgamento pessoal. Na minha opinião, esse problema decorreu da ausência da descrição do lado benéfico do mundo digital (e das contribuições destas celebridades com nossas vidas). Dada essa ausência, restou apenas o lado pernicioso, e a autora mergulhou nele. Talvez a formação marxista (a obra é desproporcionalmente construída com obras de autores marxistas) tenha contribuído para esse problema. Muitos marxistas enxergam apenas o lado ruim do "capitalismo". Tal miopia distorce a análise. 

Para terminar, achei muito grande a obra (700 páginas). Há muita descrição que poderia ser retirada ou reduzida, melhorando a fluência da leitura. Entretanto, apesar de minhas ressalvas, a obra cumpre o seu papel de mostrar um dos possíveis cenários que o reino digital pode gerar. Vimos nas eleições que o comportamento humano é altamente vulnerável, portanto, há o risco elucidado por Shoshana Zuboff. 
  








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