A complexidade da mente humana e a dificuldade de enquadrá-la em diagnósticos
O livro de Rachel Aviv inova ao apresentar uma coletânea de relatos/histórias de pacientes que lutaram contra doenças mentais. Conforme essas histórias são apresentadas, a autora faz breves comentários para reforçar sua tese, que ilustra a dificuldade de encaixar experiências pessoais em diagnósticos mentais. É uma variação do argumento de que one size does not fit all (um tamanho não serve para todos).
A autora inicia a obra contando sua própria história, na sua infância, marcada por episódios de anorexia. Jovem e em formação, Rachel não entendia o que tinha. Mais interessante ainda, e um dos pontos mais explorados na obra, dada a falta desse entendimento, ela passou a acreditar e a seguir a história contada pelos médicos e familiares. Em outras palavras, Rachel passou a responder que ela era os sintomas da anorexia, se distanciando de seu eu. A angústia de não saber onde está no mundo, ou quem é, segue não somente Rachel, como também os protagonistas das outras histórias. Rachel nos diz que as estórias ou histórias que ouvimos podem nos salvar, quando fornecem caminhos para seguir, ou também podem nos aprisionar, quando acreditamos nelas e não conseguimos visualizar nada além delas.
Uma das dificuldades de detectar e tratar as doenças mentais é a de que elas não se originam apenas de desequilíbrios químicos. Segundo a autora, essas doenças decorrem da ação recíproca e simultânea de fatores biológicos, genéticos, sociais, e psicológicos. Daí a limitação de alguns medicamentos para livrar os pacientes de lutas internas. Esses medicamentos auxiliam a parte interna dos pacientes, e a parte externa?
Outra crítica recorrente na obra é a falta de estudos e discussão para ajudar os pacientes a pararem de usar medicamentos. Há diversos estudos discutindo os benefícios da medicação, todavia, o oposto não recebe tanta atenção.
A primeira história se concentra em Ray, homem bem sucedido, com bom casamento e status social. Entretanto, Ray sofreu com a depressão. Um dos principais obstáculos foi achar uma explicação para o seu quadro. Ele sentia que toda teoria que explicava o seu quadro omitia um fator relevante, uma peça que deixava o todo insuficiente e incompleto. Ray termina sem compreender a si mesmo - o mesmo para os seus médicos. "Quem eu sou?", pergunta Ray, com uma vida marcada por lutas internas e externas - as complicações no seu mundo interior invadiram o mundo exterior, fazendo-o perder o casamento, se distanciar dos filhos, perder o emprego, e ter queda de padrão de vida.
A segunda história é o caso de esquizofrenia de Bapu, com uma mente que oscilava entre a crença em misticismo e em sua doença mental. Aqui o livro critica de forma mais explícita diagnósticos baseados em sociedades ocidentais, desconsiderando o arcabouço da pessoa sendo tratada. No caso de Bapu, uma mulher indiana que seguia gurus orientais. Como Ray, a história de Bapu terminou com o seu isolamento e distanciamento de familiares. Parece ser uma constante a solidão como consequência final em casos de doenças mentais de difícil compreensão.
Espero não ter passado uma impressão errada ao atribuir as doenças mentais para os casos acima. O livro não dá uma palavra final sobre a doença; ele discute várias possibilidades, incluindo os relatos dos psicólogos, psiquiatras, médicos e amigos envolvidos. Enquanto me pareceu mais fácil de identificar as doenças dos primeiros capítulos, a do terceiro foi mais complexa. Novamente, essa dificuldade em denotar o que o indivíduo sofre reforça o ponto da obra sobre a quase impossibilidade de encaixar lutas e delírios pessoais em diagnósticos prontos. Naomi, na terceira história, sofre uma combinação de depressão, transtorno bipolar e traumas. Um agravante era a sua desilusão com a luta contra o racismo - exemplo da influência do contexto social sobre a saúde mental. Naomi sentia profundamente a dor que seus ancestrais e negros sofreram no passado, e não conseguia lidar com esse incômodo.
A história mais interessante é a de Laura Delano, aluna prodígio que lutava para atender expectativas criadas sobre o seu futuro. A cada conquista, Laura subia ainda mais as exigências consigo mesma, chegando ao ponto de não se reconhecer - de ser uma pessoa que deveria concretizar expectativas, e nada mais. Laura variou entre transtorno bipolar, transtorno de personalidade borderline, e depressão. A norte-americana tomou tantos remédios para lidar com esses transtornos que ela chegou ao ponto de tomar outros remédios para contrabalancear os efeitos colaterais dos remédios iniciais. Sofreu com ganho de peso, falta de conhecimento de sua sexualidade e ausência de sentido para viver, culminando em uma fracassada tentativa de se matar. Laura nos diz que ela "estava presa em uma vida de um estranho".
A última história é da amiga pessoal da autora, Hava, que sofreu com desordem alimentar, anorexia e bulimia. Como Laura, Hava não sentia ter uma identidade, faltava reconhecer o seu eu. Anos e anos lutando contra os seus transtornos e recebendo diagnósticos fez com que ela achasse que ela era o seu próprio transtorno. Superado o seu transtorno, o que ela era? O que sobrou? O livro mostra a constante luta de Hava para encontrar essa resposta.
Paralela a essas lutas diárias, há também mensagens bonitas e que podemos extrair para nossas vidas, como a do namorado de Hava, Tim, que lutou com depressão (eu acho, minha memória me traiu agora). Para Tim, são as minúsculas coisas, minúsculos atos que fazemos ao longo do dia que nos ajudam a superar adversidades; essas pequeninas vitórias que acumulamos - como conseguir sair da cama ao acordar. Pequenas vitórias que se acumulam e que podem nos auxiliar a superar períodos difíceis. "Cada dia de uma vez", nos recomenda a protagonista da série Mom, Christy Plunkett, que lutava contra alcoolismo.
Eu não tenho educação formal em psicologia, portanto, tentei seguir ao máximo o livro - nunca estudei formalmente sobre os diagnósticos das doenças discutidas. Mas me pareceu que elas são de difícil identificação e tratamento, por envolverem uma gama de fatores. Além disso, elas tratam com uma das coisas mais complexas que existem, a mente humana. Rachel Aviv é feliz em descrever esses relatos e apresentar lutas diárias de pessoas que buscam se conhecer.
O único ponto negativo que detectei na obra é a falta da apresentação da tese do livro. Rachel não explicita ela e a deixa solta, construindo-a de forma muito frouxa e solta ao longo do livro. Fica difícil entender sobre o que o livro é, qual a sua proposta. Há o risco de ler o livro e concluir que ele é um compilado de histórias de doenças mentais, sem um fio condutor entre elas. A introdução do livro falhou em reportar aos leitores a sua ideia central.
De toda forma, isso se torna um detalhe em um livro que consegue mostrar a fragilidade de nossas vidas, e a delicadeza que deveríamos ter um com os outros, pois não sabemos das lutas internas e diárias que cada um enfrenta, os seus "demônios internos". Isso inclui os familiares e amigos próximos desses pacientes, os quais também são afetados pelas consequências dessas doenças.
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