Um longo século de utopias e desilusões
J. Bradford DeLong é um grande economista, com carreira consolidada e várias publicações famosas e amplamente citadas. O livro Inclinando-se em Direção à Utopia: Uma História Econômica do Século XX é mais um acerto de DeLong. Eu escolhi ler esse livro primeiro porque gosto de ler livros de história e segundo por causa do seu autor. Fui feliz na escolha - é um dos melhores livros de história que já li .
O foco do livro é o período de 1870 a 2010, denominado pelo autor de "o longo século XX". Ele escolheu o ano de 1870 porque ele foi um divisor de águas na história econômica, no sentido de gerar um mundo com prosperidade material sem precedentes.
Os 3 fatores que ativaram essa decolagem foram: globalização, laboratório de pesquisa industrial e empresas modernas.
A globalização denota a crescente integração entre países em variados eixos, como o comercial, o financeiro, o populacional e de ideias. A globalização aproximou países, permitindo que eles trocassem bens, produtos e ideias. Já não era mais um problema que o inventor de determinada máquina ou equipamento morasse em outro continente. O comércio conseguiria trazer sua inovação para quaisquer lugares.
O laboratório de pesquisa industrial foi a estratégia de empresas em expandir os seus mercados, suas vendas e seus lucros. Para isso, perceberam que inovar, criar e melhorar produtos era o caminho. Inovações reduzem os custos, atraem público e geram mercadorias sofisticadas. Desta forma, as empresas que conseguissem inovar tomavam mercados e ampliavam suas escalas de produção - talvez se tornando uma multinacional.
É nesse sentido que o terceiro fator, a empresa moderna, entra como catalizador nessa história. A empresa moderna passou a usar parte de seu lucro para apoiar a pesquisa. Criou departamentos exclusivamente com esse intuito. Indivíduos perceberam e rapidamente se qualificavam para obter bons empregos como inovadores.
Uma estatística para corroborar o salto que a humanidade teve. Em 1870, 70% da população mundial vivia na pobreza extrema. Atualmente esse número despencou para 9%. A tendência é que ele continue a se reduzir.
Segundo DeLong, o problema desse ganho material é a sua distribuição. Há enorme desigualdade de renda. A economia de mercado com a geração de seus preços, incentivos monetários e possibilidades de ascensão social ajuda a gerar prosperidade. Mas a economia de mercado não funciona para atender nossos anseios de justiça social. Como lidar com essa dicotomia?
Daí temos a grande inovação do livro, que é colocar uma teoria na descrição dos eventos históricos. Pelo menos em minha experiência, a maioria dos livros de história se resumem a narrar fatos, talvez com a opinião do autor. DeLong deu um passo adicional e forneceu uma teoria para entendermos conflitos e disputas ao longo do século - essa teoria serve inclusive para explicar os eventos atuais.
DeLong utiliza dois pensadores. O primeiro é Hayek. Para Hayek, a economia de mercado é o melhor sistema que podemos ter, pois possibilita a coordenação e cooperação entre as pessoas. Problemas e entraves são resolvidos pelo próprio mercado com a troca e transmissão de informações. Instituições são criadas para superarmos esses desafios. Portanto, há sempre a tendência de expandir nossas possibilidades tanto de conhecimento quanto materiais. A remuneração nesse sistema decorre dos direitos de propriedade. E se os direitos de propriedade são distribuídos de forma pouco igualitária?
Do outro lado temos Karl Polanyi. Polanyi diz que a terra, o trabalho e as finanças são "fictícios". O mercado transforma pessoas em uma mercadoria, trabalhadores, mas nós somos mais do que isso. Não iremos nos contentar com o salário dado pelo mercado. Iremos julgar o mercado de acordo com nossas expectativas e subjetividade.
O mercado não funcionaria em um vácuo, mas em um sistema com crenças religiosas e dimensões morais. Se o mercado não seguir essas regras escritas e não escritas, pessoas irão reclamar, irão protestar. E por definição, o mercado não se inclina a essas esferas de nossas vidas. Daí os choques de utopias: uma pró-mercado, puxada por Hayek, e outra protestando contra o mercado, liderada por Polanyi.
O longo século XX observou essas disputas, ora vertendo excessivamente para um lado, como foi o caso da União Soviética, ora vertendo para outro lado, como nos Estados Unidos. Em 2010, período final do longo século, nossos anseios por justiça social com prosperidade de renda continuam. Como resolver?
DeLong mostra 5 características desse longo século. A primeira foi que a história passou a ser interpretada principalmente por conta dos desdobramentos econômicos - isso evidencia a extensão e abrangência da economia de mercado, invadindo várias áreas de nossas vidas.
A segunda foi a globalização e a implicação de que não estamos mais isolados. O que ocorre em uma localidade distante, como a China, pode nos pegar e nos afetar. O alastramento do vírus da Covid-19 mostrou esse ponto.
A terceira foi o avanço exponencial do conhecimento e da qualificação das pessoas. Na medicina, isso representou o aumento de nossa expectativa de vida. Estamos vivendo mais anos (e com melhor qualidade de vida) do que os monarcas da Idade Média.
A quarta foi que governos não conseguiram regular e administrar adequadamente as economias de mercado. Não conseguiram criar maior igualdade de renda e potencializar os pontos fortes do mercado. Neste sentido, fracassaram em suas políticas públicas - pelo menos em sua maioria.
Finalmente, a última característica foi a de que esse longo século teve tiranias brutais, como a de Hitler na Alemanha e a de Stalin na Rússia. Dois sanguinários, talvez psicopatas (o autor considera Stalin um psicopata paranoico), responsáveis por matar milhares de pessoas.
Uma observação interessante é que enquanto no passado se matava por causa da religião, o longo século XX mostrou que a ideologia tomou esse lugar: mata-se, persegue-se e exila-se pela ideologia. Humanos, sempre necessitando de uma justificativa para implementar atos cruéis.
O livro termina em um tom um pouco pessimista. Talvez estejamos em uma fase de contração da globalização e ascensão de tiranias. Vamos aguardar os próximos capítulos.
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