Evolução do mercado de trabalho desde 700.000 anos antes de Cristo é destrinchada e trazida até os dias atuais
Tanto pelo título quanto pela introdução, A História do Trabalho (no original, The Story of Work; traduzi story como história, mas também poderia ser estória - a tradução literal de story é estória. Pensei que faz mais sentido colocar história. No futuro, quando alguma tradução para o português surgir, poderei verificar como ficou) se propõe a realizar uma tarefa dificílima: descrever os acontecimentos da humanidade relacionados ao trabalho desde a era das cavernas até os dias atuais em um curto espaço de páginas. Livros que se propuseram a fazer isso recentemente, como Sapiens: Uma Breve História da Humanidade, ou Aberto: A História do Progresso Humano, foram muito bem sucedidos. Conseguiram sintetizar o essencial, acrescentando teorias e apresentando uma narrativa condizente com o objetivo. A História do Trabalho teve potencial para seguir caminho parecido, mas pecou em alguns detalhes, como procurarei discutir nessa resenha.
O livro divide o período de análise em 6 partes, iniciando a 700.000 anos antes de Cristo, quando fósseis, esculturas, e demais restos de antigos agrupamentos permitem algumas inferências e conjecturas. O autor é feliz em apontar, em vários momentos, a fragilidade de algumas sentenças, o que é prática comum na ciência, ainda mais quando se investiga período tão longínquo. De 700.000 a 12.000 anos antes de Cristo, éramos caçadores e coletores, com tarefas divididas entre homens e mulheres. Entre elas, destaque para a caçada de animais silvestres. Lucassen argumenta que mulheres também caçavam, embora animais de menor estatura. De importante para o argumento da obra, é a conclusão de que as relações sociais se baseavam principalmente na reciprocidade e na cooperação (por exemplo, caçar animais ferozes e velozes exigia comportamento grupal). A reciprocidade era útil como um "seguro de vida": "minha caça hoje foi boa e rendeu alimento para sustentar várias pessoas, logo, irei ceder parte para sua família. Mas quando o meu dia não for muito bom, poderei contar com a sua caça".
Destacar a reciprocidade e a cooperação como aspectos comuns do homem da antiguidade também foi realizado por Johan Norberg, no excelente livro Aberto, citado anteriormente. Entretanto, Norberg enfatizou os laços comerciais. A intenção de Lucassen, por outro lado, é argumentar que ainda carregamos esse traço. Portanto, quando deparados com elevados níveis de desigualdade de renda, esse gene ancestral soaria o alarme.
A segunda segmentação temporal é de 10.000 a 5.000 anos antes de Cristo, quando tivemos a revolução neolítica, e iniciamos o manuseamento de recursos agrícolas, gerando agrupamentos sedentários. Posteriormente, de 5.000a.c a 500d.c, temos o surgimento da propriedade privada dos meios de produção, como ferramentas, gados e terras. De 500 a 1500, período já não tão distante de nós, temos a incorporação da moeda no mercado de trabalho, o que ajudou a dinamizar os contratos entre empregador e trabalhador. De 1500 a 1800, o autor denota que o mundo do trabalho testemunhou a globalização de suas relações, por exemplo com a transmissão de práticas europeias em novas terras, como Portugal inserindo sua cultura de trabalho aqui no Brasil. Finalmente, o último período é de 1800 aos dias atuais, com diversas características próprias, que tornam esse período único na história do trabalho.
Ao contrário dos períodos prévios, desde 1800 o mundo convergiu para a abolição do trabalho não livre, em especial o trabalho escravo. Embora a abolição tenha sido desigual no tocante ao tempo, com alguns países demorando para tomarem esse passo, entre eles o Brasil, conforme é destacado no livro - em livros relativos a tópicos de economia, geralmente aparecemos sob uma luz negativa (por que será?!). De qualquer forma, as nações caminharam para a redução substancial do trabalho não livre, com a ascensão de instituições que auxiliaram a sustentar o movimento, como a Organização Internacional do Trabalho, em 1919, e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948.
A Declaração dos Direitos Humanos pode ser entendida no contexto do Estado de Bem Estar Social, ou Welfare State, outra importante distinção em relação à história passada do trabalho. Esse arranjo é a tentativa dos governos nacionais em amortecer choques sobre os trabalhadores (desemprego), além de combater a pobreza e a desigualdade de renda. O Estado fornece bens públicos, transferência de renda e programas sociais.
A emergência do Welfare State ocorreu concomitantemente com a transição da economia focada no trabalho intensivo para a de capital intensivo, marcada pelas revoluções industriais, com início na Inglaterra. Ao contrário da cobertura dos períodos anteriores, nas quais o livro se perde em excessivos detalhes, tornando a narrativa monótona e repetitiva, no período recente essa descrição é bem elaborada. E essa é uma das principais críticas que tenho a essa obra: enquanto os livros Sapiens e Aberto conseguiram construir uma narrativa histórica atrativa e até mesmo empolgante, A História do Trabalho se perdeu em detalhamentos em diversas localidades, com pouco a acrescentar para o objetivo central.
Outro ponto crítico do livro é a falta de menção aos ganhos de produtividade e de receita pública que a revolução industrial e a economia pautada pelo capital intensivo propiciaram para os Estados. Estados com baixa produtividade e, portanto, fraco mercado de trabalho e com empresas pouco vibrantes, são incapazes de fornecer a rede de segurança pública para sua população, ponto distintivo e marcante do Welfare State. Lucassen foi omisso nessa parte. Em sua narrativa, dá-se a impressão que o enfraquecimento do Welfare State, por exemplo nos anos 1970 e 1980, decorreu unicamente por vontade política, quando na verdade, por causa do excesso de gasto público conjugado com baixa receita, além da estagnação do crescimento da produção, inviabilizaram a marcha de gastos crescentes. Esse vácuo também ocorrerá nas discussões de níveis salariais no mercado de trabalho. Lucassen enfatizará ações de sindicatos e movimentos políticos, dando baixo espaço para a produtividade. Seguindo o autor, os salários, por exemplo no Brasil, seriam inferiores aos da Europa precipuamente por conta dessas forças políticas. Além de ser uma explicação insuficiente, é incorreta.
Voltando ao livro, na parte final, Lucassen nos diz que durante 98% de nossa história, ou seja, desde somente os últimos 12 mil anos, é que abandonamos a reciprocidade como modo principal de relação social. Consequentemente, por estar tão enraizada em nós, não lidamos muito bem com a desigualdade de renda. Queremos uma parcela que julgamos justa por nossos esforços. Daí temos uma crescente insatisfação com a forma como a economia global avança.
O livro termina chamando a atenção para 3 princípios relacionados ao mercado de trabalho; são eles: significado, justiça e cooperação. Esse é um dos pontos fortes da obra; Lucassen mostra que interpretamos o trabalho não somente como mecanismo para gerar renda e consumo, mas que ele também nos completa. Precisamos do sentimento de fazer parte, de realizar algo, a realização pessoal, de receber reconhecimento pelas pessoas. E isso o trabalho entrega. Ele, portanto, produz significado para nossas vidas. Além disso, por conta dos 98% de tempo vivendo sob relações de reciprocidade, exigimos justiça com os nossos esforços, por mais subjetivo que tais avaliações possam ser (e são). Por fim, somos seres sociais, que cooperam entre si, mesmo que em pequenos grupos, para atingir fins, ou mesmo para interagir.
Esse livro não é ruim, apenas penso que ele executou de forma ruim a tarefa que se imiscuiu em cumprir. A forma como ele foi estruturado, enfatizando a descrição em várias localidades do mundo, tornou a narrativa tediosa. Infelizmente, a maior parte da obra se destina a essas descrições. Somente no final a obra se torna empolgante, com temas atuais, além do autor expor suas teorias e raciocínios embasados na parte inicial. Talvez Lucassen optou por esse formato para mostrar o quão heterogêneo é o mercado de trabalho, variando significativamente de acordo com a geografia. Todavia, há como realçar essa heterogeneidade, e ainda assim apresentar um livro atrativo, como foram os casos de Sapiens e Aberto.
Talvez as análises se tornassem melhor caso o autor utilizasse de ferramentas econômicas. Como já citei, a ausência do conceito de produtividade deixa um vácuo enorme nos eventos narrados. Tive a percepção de que Lucassen tem simpatia por teorias contrárias às da Ciência Econômica, pois por exemplo, não faria sentido discutir o "fim do capitalismo", ou o papel passivo dos trabalhadores como consumidores, ou o crescente padrão de vida desses trabalhadores não soaria estranho, em um mar de desmonte de Welfare State. Igualmente, ao apontar o tempo de lazer como novidade contemporânea, objetivo de muitos trabalhadores, a narrativa seria mais fluida com a incorporação da produtividade.
Dadas essas considerações, eu diria que o livro é bom, com certeza adicionará conhecimentos aos leitores. Apenas alertaria para terem cuidado com os pontos que destaquei, principalmente os relativos ao período mais recente, o qual envolve crescentes ganhos de produtividade. Analisar o mercado de trabalho sem muita fundamentação econômica deixou o livro exposto a críticas.
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