sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Resenha: A Revolução Sem Dinheiro (Martin Chorzempa)

China mostrou que é possível inovar, mesmo em um regime totalitário 

tencent alibaba


A Revolução Sem Dinheiro: A Reinvenção do Dinheiro na China e o Fim da Dominação Americana nas Finanças e na Tecnologia nos conta a ascensão do setor financeiro-tecnológico (fintech) da China, de atrasado e retardatário, para a posição de líder da economia mundial, puxado principalmente por duas empresas: Tencent e Alibaba, com os seus respectivos "super aplicativos", WeChat e Alipay

Uma das surpresas dessa ascensão é o fato de que há poucos anos o setor de fintech da China era praticamente inexistente. A maioria dos chineses utilizava notas e moedas para realizar suas transações - uma das explicações para esse atraso é a existência de bancos estatais, com poder e influência pautados não pela entrega de bons serviços, mas por conexões políticas, com o Partido Comunista Chinês. Como no Brasil, essa concentração entregava produtos e serviços ruins a preços pouco competitivos. Havia margem para melhorar todo o serviço. Todavia, faltava os incentivos.

É nesse momento que dois empreendedores entram em ação: Pony Ma e Jack Ma. Estes criariam e ampliariam a Tencent e a Alibaba, criando aplicativos para agilizar e lucrar com suas vendas. Os chineses passaram a abandonar as notas de dinheiro, pois todo o dinheiro poderia ser armazenado nos aplicativos, que também serviam como redes sociais, de notícias e entretenimento - daí o termo "super aplicativo", pois conseguiam entregar vários serviços no mesmo lugar. É o caminho que o Facebook, hoje Meta, tentou com o projeto de lançar uma moeda, a Libra, mas que não vingou. Na China, todavia, a ideia vingou. Na verdade, embora não reconhecido publicamente, a ideia de lançar a Libra derivou da experiência Chinesa. Não é por menos que as criptomoedas também têm ampla aceitação na China (pelos chineses, não pelo governo), embora a ditadura do Partido chinês tenha proibido o uso de criptomoedas. Observações: 1) eu gosto de realçar o termo ditadura, pois no campo onde trabalho os defensores ou partidários de regimes similares (ideologicamente com a China) mostram certa resistência em usar e admitir esse termo. Mas não tenha dúvida leitor: China, Rússia, Venezuela e Cuba são ditaduras; 2) agora voltando à resenha, uma explicação para a ampla aceitação de criptomoedas na China é que, contrário à maioria dos países, a China tenta controlar sua população utilizando o sistema financeiro. Desta forma, a criptomoeda, como o Bitcoin, oferece uma alternativa para fugir desse controle. Como a China é formada por mais ou menos 1/8 (um oitavo) do planeta, o que ocorre por lá respinga em terras brasileiras - às vezes em toda a economia mundial. 

Desta forma, o WeChat e o Alipay facilitaram as vidas dos chineses, que conseguiam realizar e obter empréstimos a taxas vantajosas, realizavam transações e pagamentos de forma célere pagando baixas taxas e tinham maior privacidade se comparado ao controle do Estado chinês. Em outras palavras, esses super aplicativos libertaram os chineses de uma sistema atrasado, lento, controlador e que tinha pouco respeito pelos consumidores - tudo indício de falta de competição. E note que o próprio Estado chinês percebeu esse diagnóstico. Por isso que, no início de todo esse processo, as autoridades chinesas fizeram vistas grossas para o desenvolvimento das fintechs. Era uma forma de colocar a China como economia moderna e dinâmica - o que funcionou. 

Mas problemas vieram. Pipocaram "fintechs". Entre aspas porque muitas dessas fintechs eram empresas fraudulentas, que sumiam com o dinheiro de milhares de chineses do dia para a noite. Como não havia regulamentação do governo, não havia proteção ao consumidor. Por exemplo, no Brasil temos o Fundo Garantidor de Crédito (FGC), o qual protege, em alguns investimentos, o capital de até 250 mil reais aplicado. Não havia nada similar para as fintechs na China. Chineses perdiam poupanças e economias de uma vida em minutos. Eis um dos problemas da falta de regulação em uma área sensível da economia.

Com o tempo, o Estado chinês construiu regulação para barrar esses excessos, fraudes e golpes. Todavia, outro problema surgiu: muita regulação poderia eliminar inovações das fintechs. Como inovar em um cenário totalmente regulado e controlado? Regular mercados é sempre tarefa difícil, complexa e que exige estudo para não exagerar nas regras (em 2020, o que seria o maior IPO - initial public offering - da história, foi cancelado pelo partido chinês; a divisão financeira da empresa Alibaba, o Ant group, foi impossibilitado de abrir capital devido regulamentações restringindo as fintechs - e também por conta de atritos pessoais de autoridades chinesas com o seu fundador, Jack Ma; outra observação: é arriscado se tornar muito rico, poderoso e popular na China, pois o partido chinês fica incomodado com a influência dessas pessoas - a velha "mesquinhez").

Como toda ditatura que gosta de controlar sua população, o governo chinês utilizou da nova tecnologia das fintechs para criar o sistema de crédito social. Tencent e Alibaba acumularam uma enorme base de dados, com informações pessoais e financeiras da população. O crédito social listava alguns indivíduos em débito com a justiça chinesa em uma blacklist (lista negra), a qual punia-os com maior dificuldade em obter benefícios do governo, emprego em estatais, licenças e o consumo de bens não necessários, como viajar de aviões, andar nos trens de alta velocidade, ficar em hotéis de luxo e abandonar o país. Desta forma, o governo chinês conseguiu melhorar o seu sistema de monitoramento da população. A dúvida é até que ponto o uso de dados será usado, e com qual intuito. 

Portanto, o livro deixa algumas lições. A primeira é que não sabemos como será usada a tecnologia das fintechs. Um Estado totalitário como o chinês pode usar as inovações para controlar ainda mais a população. Um estado democrático pode usar as fintechs para melhorar a vida da população. Veja que aqui no Brasil a introdução do Nubank e o sistema PIX claramente contribuíram para melhorar a vida do brasileiro. O Nubank por oferecer alternativas a um mercado bancário altamente concentrado em poucos bancos, e o PIX por mostrar que, há décadas, não precisávamos pagar para transferir dinheiro entre contas, e que bancos como o Itaú, Santander e Banco do Brasil se aproveitavam da falta de competição para extrair renda de nós brasileiros com uma oferta ruim de serviços. Fintechs aumentam a concorrência oferecendo produtos e serviços a preços mais baixos, portanto, ajudam a eliminar o poder de mercado dos grandes bancos. 

A segunda lição é que a inovação financeira pode surgir em regimes totalitários como o chinês. Embora democracias forneçam maiores incentivos, tanto pela liberdade política da população quanto pelas oportunidades econômicas, a China mostrou que ditaduras podem prosperar no setor das fintechs. O futuro nos mostrará até onde essa afirmação pode valer. A União Soviética, por exemplo, faliu com a falta de inovações sistêmicas. 

A terceira lição é que o Estado precisa regular o mercado das fintechs para coibir práticas nocivas ao consumidor. O livro apresenta vários episódios, envolvendo até mesmo o suicídio de chineses desesperados com suas perdas financeiras - e a inviabilidade de recuperá-las. Economias modernas funcionam melhor com um Estado que consegue conciliar regulação que protege a população e estimula a produção, a renda e o lucro das empresas. É difícil, mas é o único caminho possível. 

Finalmente, eu que era um pouco cético com as acusações, derivadas principalmente pelos Estados Unidos, de que aplicativos chineses como o TikTok poderiam ser usados para beneficiar o governo chinês, expondo informações sensíveis da população, passei a ver com outros olhos essa questão. O governo chinês fez exatamente isso com os aplicativos da Tencent e do Alibaba, por que não estender um pouco mais o braço ao TikTok? Basta que as autoridades chinesas decretem que desejam tal coisa, e tal coisa irá ocorrer, como foi o caso com o WeChat e o Alipay. Portanto, acredito que há o risco do governo chinês usar esses aplicativos em benefício próprio, visando metas geopolíticas e talvez até de espionagem. De novo, até onde vai os limites do monitoramento e coerção de um  Estado sem restrições constitucionais?

Em resumo, é uma obra instrutiva, bem escrita e que continuará muito atual nos próximos anos, pois o caminho das finanças parece ser a crescente digitalização do dinheiro, o uso maciço de dados pessoais por empresas para baratear os serviços e melhorar a alocação de crédito e o surgimento de fintechs que revolucionam a forma de usarmos e aplicarmos dinheiro. 




 


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