sexta-feira, 15 de abril de 2022

Resenha: A Sociedade Afluente (John Kenneth Galbraith)

Uma sociedade baseada na produção e no consumo conseguiria resolver os seus problemas sociais?

sociedade afluente


A Sociedade Afluente é talvez o livro mais famoso de John Kenneth Galbraith, autor de outras obras com expressivas repercussões, como A Era da Incerteza. Nas primeiras páginas Galbraith nos conta sobre o pessimismo do editor de seu livro, argumentando que livros escritos por economistas geralmente não geram grandes vendas - esse dado se origina em parte pela linguagem fria e pouco empolgante usada por nós economistas. Galbraith mostrou que o seu editor estava equivocado quanto à obra Sociedade Afluente. Ela se tornou leitura mundial.

A tese de Galbraith não é original, possivelmente a forma como ele a tratou é que foi o diferencial do livro. O autor estabelece que o objetivo de ampliar indefinidamente o produto interno bruto (PIB) não irá resolver todos os desafios da humanidade. Deveríamos estabelecer outras metas, mais condizentes com o bem estar dos indivíduos. Nas palavras de Galbraith: "A ideia central deste livro é que o incremento da produção não constitui o teste final para as realizações sociais, a solução para todos os males sociais".

Eu disse que essa tese não é original porque ela é facilmente lida, vista e discutida em vários cantos do planeta. É o que alguns interpretam como paradoxo do capitalismo: a priorização na produção em detrimento de outros objetivos mais nobres, mais sociais, negligência que poderia causar nossa ruína. Um slogan para essa crítica é denotar a sociedade atual como primordialmente uma sociedade consumista, despreocupada com os efeitos dessa conduta sobre a geração futura, sobre o planeta, ou ainda sobre famílias pobres e desafortunadas. 

O questionamento de Galbraith é muito parecido com o de Keynes, no início do século XX, em Ensaios em Persuasão. Não é uma coincidência, visto que Galbraith era um admirador e seguidor do pensamento keynesiano. A respeito de Keynes, no contexto das guerras mundiais que assolaram a Europa, ele enfatizava que a humanidade já tinha resolvido o problema técnico, o da produção, de gerar consumo suficiente para a vida das populações, pois tínhamos as instituições que geravam esse resultado. A guerra apenas postergou, adiou a operação dessas, entretanto, findo o conflito, a tendência seria de retomada de uma vida de bens e serviços abundantes. Restava, portanto, resolver uma questão mais profunda, sobre o nosso propósito. Do porquê seguimos com nossas vidas. Galbraith pega o fio desse pensamento e o desenvolve em seu livro.

Uma de suas principais preocupações é com a oferta de bens públicos do Estado para atender às necessidades da população, em especial a igualdade e a segurança. Segundo o seu entendimento, há um conflito entre priorizar somente a produção, uma vez que os interesses privados e públicos não seriam os mesmos em algumas áreas. Atualmente, essa falta de harmonia nos interesses é conhecida como falhas de mercado. Tanto a oferta de bens públicos, como a saúde, a educação e a segurança, quanto o investimento nessas áreas se enquadram nesse conceito (externalidades). De fato, o autor não está errado ao apontar essa disparidade nos interesses. Ela de fato existe (mas é a exceção, na maioria dos casos os interesses privados e públicos convergem). Por outro lado, há mecanismos que auxiliam a reduzi-los, mitiga-los, fazendo com que o interesse privado convirja para o público. Além de intervenções pontuais do governo na esfera do mercado.  

Galbraith entende a queda de desigualdade nos EUA (anos 1940, 1950) como efeito não pretendido pelo aumento da produção. Como a produção aumentou de forma constante e gradativa, salários e rendimentos acompanharam esse movimento, gerando ganhos para todas as camadas. Ele critica a falta de dispositivos intencionados para tornar permanente o decréscimo da desigualdade, mesmo quando a produção vacilar. Sem dúvidas essa parte está em forte contraste com autores que criticam a crescente desigualdade de renda dos EUA, para os quais existia instituições que geravam um país menos desigual. Seria o desmantelamento dessas instituições, como os sindicatos e a desregulamentação financeira, que causaria o crescente hiato de renda. Um dos eminentes nessa discursão é Thomas Piketty (farei uma resenha de seu livro nas próximas semanas). 

O autor alerta que a crescente produção cria uma também crescente necessidade. Nunca atingiríamos um ponto de saciedade. Mais seria sempre preferível do que se satisfazer com o que tem. Novamente, é a crítica para uma sociedade que considerava inerentemente consumista. Como sair desse ciclo? Galbraith alerta que essa necessidade crescente prejudicaria a obtenção do equilíbrio social: a adequada provisão de assistência pública para a população em meio à enxurrada de bens produzidos pelo setor privado. 

O livro destaca a emergência de uma Nova Classe, a qual interpretaria o trabalho não como uma tarefa árdua, chata, inconveniente e punitiva, mas como algo agradável, que contribuiria para o bem estar e realização individual. É uma classe apoiada pelo conhecimento, distante de tarefas laborais pesadas, que exigiriam vigor físico. Nessa categoria, Galbraith estaria falando de professores universitários, engenheiros, advogados, cientistas. Em resumo, todas ocupações nas quais o conhecimento acarretaria em melhores condições de trabalho, acompanhadas de remunerações superiores às da população em geral. 

No decorrer do livro há outras discussões, como a de que a incerteza econômica, ou insegurança do indivíduo seria relacionada com maior produtividade. Galbraith discorda do pensamento comum de que a estabilidade no trabalho, nos rendimentos, causaria a queda de sua produtividade. Ele vê essa causalidade como um dos maiores erros entre os economistas. Sua preferência estaria por modelos nos quais o Estado assumiria riscos, aliviando as incertezas com o futuro dos trabalhadores. Seria um modelo próximo ao empregado nos países escandinavos (Suécia, Finlândia), uma mescla de economia de mercado com o Estado.

Como ocorre com livros que chamam a atenção de todos, o livro recebeu muitas críticas. Aqui do Brasil, um crítico foi Eugênio Gudin, para o qual Galbraith superestimou a capacidade produtiva dos países, especialmente a das nações pobres. 

Eu compartilho desse questionamento. Me parece que Galbraith viu o que estava ocorrendo nas economias desenvolvidas e ricas, e generalizou para todo o mundo. Claro que problemas sociais deveriam receber a atenção de governos, mas como superá-los sem o rendimento advindo de uma crescente base tributária? Como pedir para uma nação pobre e emergente postergar o crescimento do PIB para consertar problemas sociais, quando parte da solução do problema envolve justamente a utilização de receitas provenientes desse PIB? Soa um pouco contraditório. 

Outro ponto é a distribuição de pobreza para todos, prática implementada pelos países socialistas. Caso a produção fique em um lugar secundário de importância, colocando a redistribuição como objetivo central, viraríamos rapidamente uma União Soviética: pobre, atrasada e condenada a uma implosão, como ocorreu com esse império. Pense no Brasil. Se todo o PIB for igualmente dividido para a população, os problemas sociais que temos, como violência, falta de educação, saúde, seriam todos superados? Penso que não. Esse ponto se torna ainda mais crítico se olharmos para as nações africanas. Elas iriam redistribuir o que? A produção não deveria ser a meta? Quando Galbraith escreveu a obra (1958), tanto a Índia quanto a China nem sequer pensavam em se tornar as potências de hoje. Ambas as economias miraram expandir o PIB, o que representou a saída de milhões de indivíduos da extrema pobreza para o status de classe média. Caso tivessem optado por redistribuir o pouco que tinham em 1958, como estariam hoje? Tanto Galbraith quanto Keynes recebem esse tipo de questionamento. 

Finalmente, será que Galbraith não alardeou excessivamente um ponto que é a exceção, e não o que normalmente ocorre nas economias de mercado? Corretamente ele mostrou que existem falhas de mercado, quando há divergência de interesses privados com o público. Todavia, o que mais se observa é a harmonia entre essas partes, gerando ganhos para todos.

Apesar dessas críticas, recomendo a leitura de A Sociedade Afluente. Ainda que eu discorde de alguns pontos, a forma como eles são trabalhados, construídos e desenvolvidos puxa a nossa atenção e nos faz refletir sobre como funciona a sociedade contemporânea. Galbraith tem uma escrita atrativa, permeada por um senso leve de humor (o que o diferencia da escrita monótona de economistas), o que ajuda na leitura. Além disso, foi um grande autor, com vasto conhecimento, e que ajudou a olharmos para problemas não econômicos. Sem dúvidas é um livro que agrega conhecimento.


1) O blog tem uma resenha de outro livro de Galbraith: A Era da Incerteza

2) Na resenha mencionei o termo Falha de Mercado. O blog tem 4 artigos tratando de cada uma delas:

Poder de Mercado

Externalidades

Informação Assimétrica

Bens Públicos






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