sábado, 20 de junho de 2020

Resenha: A Sociedade Aberta e seus Inimigos (Karl Popper)

Popper fornece visão crítica de teorias que conduziram a sociedade do século XX para o totalitarismo

sociedade aberta


Karl Popper (1902-1994) pertenceu à geração de ouro da Áustria na virada do século XIX para o século XX, tendo testemunhado as guerras mundiais, a guerra fria e a ascensão de regimes totalitários. E tudo isso foi refletido em sua escrita, a qual propunha um sistema político e econômico capaz de fornecer tranquilidade para a humanidade e reduzir os conflitos armados. 

No livro A sociedade aberta e seus inimigos, talvez a principal obra de Popper, o objetivo é contrastar a “sociedade tribal”, formada por um chefe, permeada de elementos místicos e supersticiosos, com a sociedade aberta, democrática, governada por leis e regras transparentes e comuns para todos, caracterizada pela liberdade individual. A partir disso, o autor aponta o historicismo como teoria que pode realizar a regressão da sociedade aberta para a tribal, uma vez que este prega o determinismo no destino dos indivíduos e, portanto, retira o componente de responsabilidade individual pelo futuro da sociedade. Para piorar, muito do historicismo é conjugado com a defesa de guerras e conflitos violentos, como prova final do sucesso. Popper destina grande parte do livro em atacar os principais proponentes do historicismo, sendo Platão no volume I, e Aristóteles, Hegel e Marx no segundo volume. 

O historicismo é “a doutrina de que a história é controlada por leis históricas ou evolucionárias específicas, cujo descobrimento nos capacitaria a profetizar o destino do homem”. Não será difícil para o leitor perceber o quanto de historicismo existe nos dias atuais, variando desde teses religiosas para profecias de cunho científico – no espírito do livro, a teoria de que o socialismo é o destino final da sociedade, o caminho inevitável de transição do capitalismo. 

Popper causou grande controvérsia e ressentimento dos admiradores de Platão ao apontá-lo como um dos seus alvos. Não tenho espaço para discutir todas as críticas, dada a vastidão do pensamento platônico, todavia, resumo-as em elementos comunistas, racistas, totalitários e a destinação do Estado para a degradação social. Esse conjunto de ideias não é novidade para os leitores do livro A república (principal obra de Platão), quando neste podemos ver a defesa pela separação de classes (com o cuidado de evitar a mistura em sua procriação), críticas às democracias e a preferência por regimes mais centralizados, e o pessimismo com o desdobramento dos Estados, os quais degeneram com o tempo – famosa teoria das Formas. 

No segundo volume, Hegel é criticado por sua predileção pelo coletivismo em detrimento do individualismo. “Sua doutrina – nos diz Popper - é a de que o estado é tudo e, o indivíduo, nada”. Para quem viveu e presenciou o horror das guerras mundiais, Popper não hesita em atacar Hegel, para o qual “a guerra não é um mal comum e frequente, mas um bem precioso e raro”. Popper confessa no prefácio que foi, algumas vezes ao longo da obra, um pouco emotivo. Pede desculpas e justifica tal conduta por causa do contexto quando esta foi escrita (em meio à segunda guerra mundial). 

Ao contrário de Platão e Hegel, Popper mostra uma inclinação às intenções de Marx em melhorar a sociedade. Acredita que ao contrário dos outros dois, Marx realmente tentou tornar a vida dos indivíduos mais suave, reduzir o fardo da labuta. Entretanto, Marx pecou ao utilizar elementos proféticos em sua teoria, como o destino para o socialismo. Popper descreve vários pontos centrais do marxismo, como a mais-valia, o materialismo histórico (sendo inclusive elogiado pelo realismo ao descrever as motivações do homem), a luta de classes e a crescente produtividade do trabalho (resenha do livro O capital de Marx aqui). Apesar das críticas sobre o marxismo, Popper destaca pontos que ajudaram no avanço do pensamento científico, como o incentivo monetário para explicar a história universal. 

Marx criticou o capitalismo irrestrito. E Popper se junta a ele ao tecer críticas sobre o sistema. Para isso, utiliza o conceito de paradoxo da liberdade. “A liberdade, como vimos, derrota a si mesma, se for ilimitada”. “Liberdade ilimitada – prossegue Popper - significa que um forte é livre de agredir um fraco e roubar a liberdade deste. Eis a razão por que exigimos que o estado limite a liberdade a certa extensão, de modo que a liberdade de cada um seja protegida pela lei”. Ninguém deve estar à mercê de outros, mas todos devem ter o direito de serem protegidos pelo estado. Tal restrição sobre as ações dos outros entra no reino econômico, pois o acúmulo de poder econômico colocaria alguns poucos indivíduos com demasiado poder de barganha. Aqui Popper defende o intervencionismo do governo, como medida para equilibrar o poder econômico e evitar que indivíduos muito poderosos consigam subjugar os demais.  

Ao defender um sistema misto, com a economia de mercado restringida pela mão do governo, Popper faz alusão ao que seria o Estado de Bem Estar Social, que prevaleceria após a segunda guerra mundial. Em tal sistema, mercado e governo seriam complementares, procurando atender às demandas da população. Nem muito intervencionismo, pois este poderia se degenerar em totalitarismo, tampouco excessiva liberdade econômica, pois a revolução industrial mostrou as consequências de tal permissibilidade para poucos exercerem o poder econômico. 

O livro é rico em conceitos para ajudar no entendimento do raciocínio proposto. Além do paradoxo da liberdade, temos o da mecânica gradual. Por meio desse mecanismo, as instituições que moldam nossa sociedade, como por exemplo as leis e normas, são formadas não visando a um fim definitivo, mas tão somente melhorar a situação presente, tateando qual o melhor caminho para se seguir. Tal trajetória não seria desprovida por erros, pelo contrário, seria marcada pelo método de tentativa e erro. A forma institucional na qual vivemos é mais espontânea do que formalmente programada, uma vez que nossos conhecimentos dos fatos particulares não nos habilita a prever todas as consequências diretas e indiretas de nossas ações. Mecânica gradual, portanto, seria a forma preferível para moldar a sociedade (outros grandes autores também argumentam nessa direção, como Douglass North, Hayek e Mises, com as respectivas resenhas aqui, aqui e aqui). 

A defesa pela democracia decorre não por ideais como a voz do povo ou desejo da maioria, mas pelo fato dessa limitar o poder dos políticos, estreitando as consequências de seus atos sobre toda a sociedade. O argumento implícito é que o acúmulo de poder, seja para quem for, é prejudicial para a humanidade, ainda que o ocupante de tal poder seja benevolente. Popper atribui a responsabilidade da vida de cada homem para si mesmo, e não para uma entidade coletiva, que supostamente conseguiria conciliar todas as demandas individuais e produzir o bem comum. 

No final do livro, desfere o golpe final sobre as teorias proféticas e sobre o historicismo ao afirmar que “a história não tem qualquer significação”, embora ao longo da história muitos pensadores e místicos tenham tentado fazer o oposto. A história é uma coleção de fatos que pode ser usada para justificar diferentes propostas, todavia, é inerentemente desprovida de significado. “De um ponto de vista puramente científico, a vida humana não tem sentido algum” – diria o autor de Sapiens (resenha aqui). Isso não quer dizer que deveríamos abandonar a vida. Apenas retrata como devemos estar atentos para não cair em teorias historicistas. No final das contas, o destino de cada homem cabe a ele próprio.


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