Obra fornece fundamentação teórica para nossas vidas
We Who Wrestle with God (Nós que Lutamos com Deus) é o mais recente livro de Jordan Peterson, autor de 12 Regras para a Vida e Além da Ordem, além de diversos vídeos disponíveis no Youtube. O livro Nós que Lutamos com Deus funciona como uma base teórica para os seus argumentos e ideias, mostrando suas raízes e fundamentos. Nesse sentido, o livro enriquece tanto a discussão promovida por Peterson quanto ajuda aos seus seguidores a compreenderem mais a fundo a origem de suas ideias.
A dinâmica
do livro é apresentar passagens famosas da Bíblia e discutir o seu sentido e
significado para nós. Desta forma, a primeira crítica recai sobre a
interpretação literal dos eventos da Bíblia; sendo um livro de profundo
conhecimento e sabedoria milenar, tais interpretações não são triviais,
exigindo contextualização por parte do leitor (sempre me decepcionei com essa
parte nas missas quando frequentava a igreja católica; eu sentia que os padres
replicavam e repetiam o sermão do evangelho). Assim, Peterson oferece um guia
para entender a Bíblia e o nosso comportamento, pois ainda que
inconscientemente, vivemos e baseamos muito de nossas vidas nas histórias
contadas por ela.
A primeira
narrativa é o Jardim do Éder, com Adão e Eva, e a cobra/serpente espreitando a harmonia
reinante. A cobra denota que, não importa o quão estável esteja nossas vidas,
problemas e o caos sempre estarão nos espreitando. Eles chegarão, assim como
chegou para Adão. O erro de Adão, ao desobedecer ao Senhor e comer a maçã
oferecida por Eva sob a influência da cobra, gerou a sua queda. Vários
personagens bíblicos cometem erros e sofrem quedas – uma das grandes lições da Bíblia é a de que não importa o nosso passado, é sempre possível se reerguer e
seguir um caminho honroso e digno.
A Bíblia nos pede que assumamos responsabilidade voluntária e carreguemos o nosso fardo com coragem. Essa ideia é bem ilustrada por Abraão, quando abandona sua vida confortável e sem perigos para seguir sua jornada. Abraão aceita carregar o fardo. Outro personagem que elucida esse ponto é Jacó, que em sua infância se comportava como um patife mentiroso, tendo enganado o seu irmão duas vezes. Jacó se reergue e retorna para sua casa pedindo perdão ao seu irmão; porém, retorna como homem feito, com resiliência, responsabilidade e carregando a verdade e a honestidade. É a transformação de menino em homem com responsabilidades. O seu próprio nome também muda, passando a se chamar Israel, cujo sentido é "ele que luta com Deus" - daí a derivação do título do livro.
Moisés
libertou o povo do domínio egípcio e os levou para a terra prometida. Porém,
entre a libertação e a terra prometida existia o deserto, exigindo anos e anos
de labuta e sofrimento. O deserto nos mostra que para chegarmos aonde
desejamos, teremos de arcar com dificuldades – não existe um caminho sem
atritos. Teremos de crescer durante a sua passagem. É uma mentalidade infantil
que iremos chegar aonde nunca fomos sem sofrimento. Haverá o deserto.
Na Bíblia,
a conduta moral honrosa e o sucesso são sinônimos. Para se ter sucesso na vida,
há de se portar sob os princípios bíblicos, e quem se porta dessa forma,
honrando e respeitando as pessoas e buscando “olhar para cima”, atingiu o
sucesso em vida. Sucesso é uma palavra estranha no linguajar bíblico, mas faz sentido
no mundo no qual vivemos.
Outra
imagem da Bíblia é a de que “olhar para cima” significa sair da mesmice,
encarar desafios e assumir responsabilidades. Quem adota essa postura sobe e
avança para cima. Daí o céu ser a salvação, por estar em cima. O inferno, por
outro lado, é o olhar para baixo. É naufragar em fraquezas, em prazeres baratos
e imediatos, fugir de responsabilidades. A dicotomia céu/alto e inferno/baixo funciona
como bússola para nos guiar em nossas vidas.
A passagem
de Noé e a salvação por sua arca, com os seres em pares, denota que precisamos
de amigos, família e a comunidade para superar adversidades. O indivíduo
sozinho não é suficiente contra as intempéries do mundo. Em outras palavras, o
individualismo levado ao seu extremo não é a resposta. Tanto Peterson quanto a Bíblia valoram a vida em comunidade e a coloca como auxílio para nossas vidas.
Não estamos justamente perdendo esse sentido de comunidade e de pertencimento
em um mundo cada vez mais pautado por redes sociais e o distanciamento social?
E talvez, esse não seria um dos problemas e ao mesmo tempo não ofereceria a
solução? Eu penso que sim.
A torre de
Babel ilustra a falta de humildade em quem aposta todas as fichas no avanço
tecnológico, esquecendo de valores tradicionais. A falta de humildade
normalmente termina em um indivíduo ressentido, arrogante e mentiroso. Usando o
sinônimo anterior, a torre de Babel mostra que a falta de conduta moral nos
conduz a vidas incompletas, o fracasso.
Temos de
nos sacrificar para obter o que desejamos, se esforçando para sermos íntegros
quando tempos difíceis chegarem – essa é uma das lições da Bíblia. Abraão,
depois de passar por vários desafios, recebe o pedido de Deus para sacrificar o
que ele tem de mais sagrado em sua vida, o seu filho. Abraão aceita. Todavia,
antes do sacrifício ocorrer, a ordem é retirada. A lição: devemos estar prontos
para perder e abrir mão do que temos ao longo de nosso caminho, pois não iremos
de fato perder o que deixamos para trás. Seremos outros, nos transformaremos ao
longo da jornada – iremos abandonar o nosso velho eu, dando origem a uma versão
mais completa, com valores morais sólidos, ainda que sujeita a erros. A
cristalização desse ponto é o dito filosófico de que "nenhum indivíduo entra
duas vezes no mesmo rio", pois estamos constantemente em transformação. Eternas
metamorfoses de nós mesmos.
Como fã de
Jordan Peterson, minha avaliação pode ser enviesada, então considerem isso.
Gostei muito do livro, especialmente por esclarecer várias passagens na Bíblia nas
quais eu tinha pouca compreensão, como a de Noé. E admito que quando novo
critiquei a Bíblia por “inventar coisas fantasiosas”, quando na verdade eram
figuras para nos levar a compreensões mais profundas. Assim, fico grato com o
livro. Também gostei da obra por explicar vários posicionamentos de Jordan
Peterson. De certa forma, ele se revelou um pouco mais neste livro.
Há citações
de vários livros e filmes famosos, como o do Pinóquio, principalmente quando
ele é engolido pela baleia. Jonas também foi engolido por uma baleia/peixe gigante, tendo
ficado 3 dias e 3 noites no seu interior, para depois conseguir sair com vida.
Jonas negou responsabilidades e mostrou dúvidas a respeito de sua jornada, e
assim sucumbiu ao profundo – de novo, indo para baixo, a ideia de inferno.
Pinóquio viveu em fantasia e também sucumbiu. Filmes da Disney carregam muito
conteúdo bíblico.
Caim assassinou o seu irmão Abel de forma covarde e ardilosa. Caim nutria inveja e ressentimento com o seu irmão; curiosamente, Caim tinha como ideal de vida justamente aquilo que ele mais odiava e rejeitava, a figura de Abel. Ao matar Abel, ou seja, destruir esse ideal, Caim sucumbiu no vazio existencial. É um alerta para aprendermos a lidar com a inveja e o ressentimento. Eles podem nos destruir. Além disso, essa história mostra as limitações da vingança como meta e propósito de vida.
Por fim, a leitura é densa. Não é leve como a dos livros anteriores. O livro também é grande, com 600 páginas. Isso exigirá um pouco mais do leitor, mas garanto que ele será recompensado com conhecimento e sabedoria. Quanto mais aprendo a interpretar a Bíblia, mais percebo que ela é um livro de muita sabedoria, nos ajudando a lidar com situações caóticas e desafiadoras. Para além da religiosidade (não me considero religioso e tampouco frequento a igreja, apesar de ser católico), a Bíblia oferece dicas, lições e sabedorias fundamentais para guiar nossas vidas. Como dizia o Eclesiástico: “não há nada de novo sob o sol”. Se a vida funciona dessa forma, então o conteúdo da Bíblia pouco envelheceu – apenas o ambiente e os personagens mudaram. Mas a nossa essência continua a mesma -, servindo, portanto, de valioso guia para nós.
Tenho resenhas dos outros 2 livros de Jordam Peterson:
1) 12 Regras para a Vida. Resenha aqui.
2) Além da Ordem. Resenha aqui.
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