Aumento da quantidade de moeda continua a pressionar os preços, apesar do desejo contrário de analistas
A reportagem de capa da revista The Economist destacou negativamente a atuação do banco central dos Estados Unidos, o Fed, por ter sido complacente com o crescimento dos preços. A inflação de 12 meses dos americanos atingiu o valor de 8,5%, cifra comum em países emergentes e em desenvolvimento, mas pouco vista em nações ricas.
O gráfico abaixo, com dados do Banco Mundial, pode dar uma ideia do porquê do alarde. Veja que eventos nos quais a inflação atingiu valores superiores ou iguais a 8% ocorreram nas décadas de 1970 e início da de 1980. Naquele período, o Fed reagiu agressivamente, subindo a sua taxa de juros - promovendo uma recessão, - e conseguindo êxito em estabilizar e baixar a taxa de inflação. Desde então, a inflação se situou abaixo de 4%. Vale fazer menção honrosa à Nova Zelândia, país que criou o Regime de Metas de Inflação, o qual passou a ser seguido pela maioria das economias, visto sua eficácia em controlar os preços.
Mas por que o Fed permitiu essa inflação crescente? Em parte, como esforço contra a Covid-19, o banco implementou medidas que poderiam elevar os preços, marcadamente novas rodadas do Quantitative Easing. Esse termo representa a utilização da política monetária de forma não convencional, isto é, como a taxa de juros de curto prazo (aqui no Brasil é a Selic) estava muito próxima de 0%, era impossível baixá-la para valores negativos (lembre-se: taxa de juros nominal tem como limite inferior o valor de 0%, enquanto a taxa de juros real pode ser negativa, e a rigor, não enfrenta limites de valores). Dada a impossibilidade de estimular a economia baixando ainda mais a taxa de juros, o Fed, desde a crise financeira de 2008, tem comprado títulos públicos e outros ativos financeiros, mesmo pertencentes a empresas privadas. Dessa forma, o Fed injetava moeda na economia, mantendo o preço de ativos financeiros inflados (o que protegia empresas endividadas de venderem ativos a valores abaixo dos de mercado, com risco de insolvência) e contribuía para a sustentação da demanda.
Durante o pior momento da pandemia, notadamente o período de lockdown (confinamento), havia muita incerteza sobre o efeito dessa política. O mesmo é válido aqui no Brasil. O banco central brasileiro colocou a taxa de juros Selic em seu valor mais baixo já registrado, 2%. Atualmente, este banco tem sido criticado por ter permitido uma taxa de juros tão baixa em um país com vários gargalos em sua estrutura produtiva, os quais, quando a demanda voltasse ao normal, causariam rápida elevação dos preços. A verdade é que poucos tinham noção das consequências dessas políticas monetárias. Todo o cenário da pandemia era de muita incerteza. As autoridades monetárias atuaram em território pouco conhecido. Por isso, na minha opinião, não acho que tais condutas foram imprudentes. O temor de que a economia caísse em fortíssima recessão permeou as previsões.
Entretanto, conforme os EUA superavam os riscos de recessão, de fato o Fed demorou para alterar o rumo de sua política monetária. O banco se limitou apenas a sinalizar de que iria aumentar as taxas de juros, e mesmo assim, os valores indicados eram muito baixos para reverter a tendência de preços ascendentes. Daí tivemos consequências também pouco esperadas após a pandemia, como o repique da demanda, guiada principalmente pelo consumo das famílias, criando problemas de escassezes de insumos, como microchips.
Há outros culpados nessa história. Tanto nos EUA quanto aqui no Brasil, ambos os governos foram generosos na distribuição de auxílios fiscais para a população. Até recentemente, analistas dos EUA quebravam a cabeça para compreender a ausência de trabalhadores no mercado de trabalho. Uma das explicações residia nos auxílios recebidos. Com eles, as pessoas puderam estender o período em casa. No Brasil, mesmo com a rede de segurança pública, o SUS e programas sociais, o governo gastou quantia próxima a de economias desenvolvidas. É um comportamento que nos persegue em nossa história econômica: temos uma economia de mercado emergente, mas que gasta como se fosse uma economia desenvolvida.
A lista dos culpados conta também com a guerra entre a Ucrânia e a Rússia, além das sanções que penalizarão todo o mundo. A Ucrânia é uma grande exportadora de grãos, e a Rússia de petróleo e gás natural. Os preços de itens relacionados com esses insumos já têm reagido. As sanções, embora ainda pouco sentidas, tendem a criar novas pressões sobre os preços. Em um mundo integrado comercialmente e financeiramente, sanções unilaterais prejudicam tanto o país alvo quanto os que as aplicam, e também os que apenas assistem, como o Brasil.
Talvez o fator raiz da complacência do Fed com a inflação tenha sido o coro de economistas afirmando que o velho elo entre crescente quantidade de moeda e preços ascendentes tenha deixado de existir. Isso se mostrou errado. Continua sendo válida a relação positiva entre moeda e preços: se a moeda se eleva em quantidade superior ao aumento da produção, os preços subirão. Os defensores de uma taxa de juros Selic baixíssima deveriam se lembrar da relação moeda e preços.
Logo, torna-se necessário explicar por que o Quantitative Easing dos EUA não provocou aumento dos preços quando implementado. Eu diria que outros fatores interviram sobre os preços, segurando-os para baixo. Os principais seriam: envelhecimento da população (tende a consumir menos e a poupar mais), fraca demanda (em parte explicada pelo primeiro fator) e baixos níveis de investimento (cenário de incerteza e risco postergou planos de investimento). A literatura de economia cunhou esse cenário de estagnação secular. De toda forma, pode ser que esses fatores anularam o efeito sobre os preços que o quantitative easing poderia provocar. A inflação depende de outros fatores, não somente da quantidade de moeda em circulação.
Os próximos meses prometem taxas de juros crescentes. Seguindo o Regime de Metas de Inflação, os bancos centrais deveriam subir os juros para arrefecer a atividade produtiva e, por conseguinte, desacelerar a inflação. O banco central brasileiro já tem seguido esse caminho. O Fed também o seguirá. O resultado pode ser um novo impulso negativo sobre a recuperação mundial. Todavia, o preço que a sociedade paga por preços crescentes é muito elevado. Foi o que o Fed fez no ano de 1981 (volte no gráfico). O preço de uma recessão transitória se mostrou vantajoso naquele período, com as décadas seguintes assistindo a um crescimento contínuo da produção com baixos preços. A tendência é de que o Fed repita a mesma estratégia, mesmo tendo sido complacente com a inflação.
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