Teoria do jogo não cooperativo joga luz para entender a inviabilidade do atual arranjo político e econômico para o avanço do Brasil
Fernando de Holanda Barbosa é um dos principais macroeconomistas do Brasil, com vários artigos publicados em importantes revistas científicas. Eu mesmo utilizei alguns desses artigos para avançar minha pesquisa, como foi o caso do meu projeto para o doutorado, quando consegui entrar no doutorado em Teoria Econômica da USP em 2019.
Nesse livro, Barbosa apresenta uma teoria para explicar o ciclo vicioso no qual a economia brasileira está presa há décadas: uma fase de crescimento que rapidamente se degenera em crise fiscal, a qual dá origem a um período de estagnação. Sua hipótese tem como núcleo a difusão de privilégios concedidos pelo Estado aos vários agentes da sociedade.
Devido ao arranjo cultural e institucional, a interação entre políticos, empresários e trabalhadores resulta em um jogo não cooperativo, no qual o objetivo de todas as partes envolvidas é o de extrair o máximo de renda pública possível - preferencialmente tornando o mecanismo legal e perpétuo.
Para compreender o que seria esse jogo não cooperativo, Barbosa distingue 3 grupos que atuam no Estado brasileiro. O primeiro é cunhado de neoprogressistas, aqueles que, uma vez no poder, realizam reformas econômicas e políticas para melhorar o funcionamento do país - é o grupo responsável por gerar crescimento econômico. O segundo são os neopopulistas, preocupados em apenas converter a máquina pública em engrenagem para se perpetuarem no poder. Os neopopulistas seriam de tradição marxista, portanto, suas políticas públicas, em muitas oportunidades, seguiriam o contrário da recomendação de boas práticas. O último grupo é o dos oportunistas, aglomerado sempre presente na política nacional (um exemplo é o "centrão"), se associando com o grupo no poder, seja ele formado por neoprogressistas ou neopopulistas.
Os oportunistas miram o privilégio. Nas palavras do autor, privilégio é "definido pela apropriação de recursos públicos para fins privados, por meios legais, sem que haja contrapartida de trabalho que justifique o valor extraído". É uma forma de se tornar rentista do Estado. Sem dúvidas uma posição atrativa para esse tipo de pessoas, dado que o rentista do Estado enfrenta baixo risco de retorno de seu "investimento" (não é como investir no mercado de ações, com altas e baixas constantes), exigência de pouco ou nenhum trabalho e fonte de rendimento constante.
Para Barbosa, o ideal em termos de arranjo econômico é a economia social de mercado. Esse termo denota que a alocação e a eficiência de recursos no país ocorreriam pela ótica do mercado, ao passo que a busca de justiça social e de correções pontuais ocorreriam pelo governo. Eu normalmente me refiro a essa combinação de economia de mercado. Talvez Barbosa inseriu o termo social para reforçar o papel do Estado, e para distinguir sua proposta de outras correntes radicais, com baixo respaldo na comunidade acadêmica, como os libertários. Outra hipótese é a de destacar que não há mercado que funcione adequadamente sem regulações públicas - nesse caso, Barbosa estaria se protegendo de marxistas/saudosistas do regime soviético, mostrando que temos de ter mercado e governo. Nada de extremos. Tirole, no seu livro A Economia do Bem Comum, argumenta muito bem nessa mesma direção.
Durante a obra, são dados exemplos atuais de conluio de neopopulistas (a maioria relacionados ao Partido dos Trabalhadores, o PT) com oportunistas. É mostrado por meio de gráficos e equações como a administração dos neopopulistas degenerou os instrumentos de política econômica, utilizando-os tanto de forma ideológica quanto para beneficiar grupos bem posicionados.
A própria definição de neopopulista me pareceu uma crítica ao PT: entre as críticas após o fim dos anos petistas (2003-2015), uma delas era a de que o partido buscou se perpetuar no poder por meio da distribuição de dinheiro público e esquemas fraudulentos, marcadamente revelados pelo mensalão e pela Operação Lava Jato. Eu teria pensado em uma definição mais ampla, algo como um grupo que utiliza a teoria marxista para realizar políticas econômicas, com claro viés antimercado, gerando, inevitavelmente, a falência do modelo proposto, com crise fiscal e estagnação. Não teria adicionado na definição desse grupo a parte relativa ao desejo de permanecer indefinidamente no poder. De qualquer forma, esse detalhe não é muito importante.
Prosseguindo na resenha, o autor utiliza a definição de instituições de Acemoglu e Robinson, do livro Por que as Nações Fracassam. Teríamos instituições extrativas ou inclusivas. As primeiras focam em obter renda pública sem a contrapartida de trabalho. As segundas, característica dos países desenvolvidos, se propõem a gerar leis e regras aplicáveis a todos cidadãos, a conceder voz e participação aos eleitores. O Brasil estaria preso no quadro de instituições extrativas, em parte por conta do nosso passado patrimonialista e fomentado por práticas de concessão de privilégios, com as capitanias hereditárias sendo um marco. Portanto, a forma de colonização empregada por Portugal teria auxiliado na formação da economia de privilégios.
No caso da cultura, Barbosa tece críticas ao comportamento do brasileiro. A figura de Macunaíma, anti-herói do livro de Mário de Andrade, é usada para evidenciar como ainda temos de evoluir nessa parte. Como Macunaíma, somos marcados por tentar tirar vantagem de diversas circunstâncias, usando subterfúgios - o famoso "jeitinho brasileiro". Enquanto não melhorarmos como povo, continuaremos a produzir políticos medíocres, dado que esses são derivados da população, refletem os valores e as preferências nacionais. Por conseguinte, pouco adianta atribuir os pecados políticos aos representantes eleitos, quando esses apenas refletem a população.
Barbosa se aproxima de autores conservadores, como Hayek e Roger Scruton, ao afirmar que precisamos assumir a responsabilidade por nossos atos, ao invés de buscar culpados e terceirizar a culpa. Em outras palavras, precisamos avançar no quesito responsabilidade individual. O recentemente falecido, Olavo de Carvalho, costumava dizer que pouco adianta criarmos leis e instituições bonitas no papel, uma vez que, em última instância, todas as instituições funcionam por meio de indivíduos. Enquanto o indivíduo brasileiro não melhorar, continuaremos a ter instituições inadequadas.
Algumas páginas são dedicas em expor soluções para esse problema. No campo econômico, para recolocar o país em rota de crescimento acelerado, as recomendações são políticas voltadas para aumentar a produtividade, como reformas de abertura comercial, tributária, educacional e privatizações, e políticas para elevar o investimento público em infraestrutura. Neste caso, a recomendação é carimbar impostos, algo proibido pela Constituição de 1988: alguns impostos teriam destino específico, ou seja, tais impostos financiariam determinado segmento do país. A ideia de Barbosa é reduzir o capital disponível que oportunistas poderiam se apropriar. Como parte do dinheiro público teria destino prévio, essa quantia não ficaria à mercê de aproveitadores. O economista Naercio Menezes, na obra A Carta: Para Entender a Constituição Brasileira, faz recomendação parecida em relação à verba pública para educação e saúde de municípios. Não é o arranjo ideal de alocação de recursos públicos, mas dada a elevada propensão de grupos de oportunistas de desviarem a verba, esse mecanismo pode minimizar esse risco. Concordo com ambos os autores.
A respeito do jogo não cooperativo, Barbosa afirma que deveríamos pautar o funcionamento das instituições pela busca de regras universais, aplicáveis a todos os brasileiros, sem a concessão de exceções ou privilégios. Infelizmente o livro trabalha muito pouco esse caminho. Apenas nos diz o que é desejável, sem esmiuçar como poderíamos chegar nesse ponto. O livro O Corredor Estreito, de Acemoglu e Robinson (sequência do livro Por Que as Nações Fracassam), poderia ter sido usado para auxiliar no desenvolvimento dessa parte, uma vez que o livro mostra uma das formas de se criar uma sociedade com regime político funcional, sem abandonar a economia de mercado.
E essa é uma crítica que tenho ao livro de Barbosa: senti falta de capítulos desenvolvendo a teoria proposta de jogo não cooperativo. Enquanto a primeira parte do livro analisa os últimos anos da economia brasileira, vez ou outra citando a teoria e relacionando-a com o governo em questão, a segunda parte, a qual imaginei que daria essa profundidade no livro, não o fez. Para minha surpresa, a segunda parte é uma coleção de colunas escritas pelo autor, sobre temas diversos, sem conexão direta com a proposta do livro.
Essas colunas são boas, interessantes, têm argumentação técnica e precisa, entretanto, elas não colaboram para avançar a proposta do livro. Dada a história econômica do Brasil, pensei que Barbosa iria elencar e separar cada governo do último século na separação de neoprogressista, neopopulista e oportunista. Mas apenas os governos petistas e de Bolsonaro (este último tido como oportunista) receberam atenção. Por conseguinte, embora a teoria do jogo não cooperativo faça sentido (eu mesmo concordo em grande parte com ela), faltou desenvolvê-la mais.
Sobre a estrutura do livro, a primeira parte tratando da teoria, e a segunda mostrando diferentes textos, representou uma quebra no desenvolvimento da obra. O que vejo normalmente são livros apenas de teorias, ou livros sendo uma coleção de colunas, como os livros de Pedro Malan, Uma Certa Ideia de Brasil: Entre Passado e Futuro, de Roberto Campos, Antologia do Bom Senso, e de Eugênio Gudin, Reflexões e Comentários: 1970-1978. A mistura dos dois tipos me pareceu um caminho confuso, não entregando a teoria totalmente desenvolvido e tampouco um livro conciso com o que foi prometido.
A despeito dessas ressalvas, o livro tem pontos positivos que mais do que compensam possíveis omissões, como a apresentação de uma teoria atrativa e aplicável para o caso brasileiro, análises precisas e bem fundamentadas, boa discussão e argumentação da política do país nos últimos anos, e o principal, algo que me lembrou Roberto Campos, grande domínio das ferramentas econômicas, expondo-as com facilidade e claridade. A parte relativa às colunas, embora tenha fugido do foco do livro, são um convite para a discussão de temas quentes e controversos, os quais, felizmente, são tratados de forma leve, e até chegam a parecer simples, dada a inteligência analítica de Barbosa, traço que justifica a leitura da obra.
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