quinta-feira, 2 de junho de 2022

Resenha: Bad Blood: Fraude Bilionária no Vale do Silício (John Carreyrou)

Ascensão e queda de Elizabeth Holmes

theranos bad blood


No início desse ano, Elizabeth Holmes ocupou os holofotes pelo julgamento de sua conduta enquanto CEO da empresa Theranos. Eu que conhecia praticamente nada a respeito tanto dela quanto da empresa, fiquei curioso com algumas acusações, bem como com o retrato que tinha sido construído. Homes era tida, por muitas pessoas, como a sucessora de Steve Jobs e Bill Gates no ramo de inovação. 

Assisti a uma série de poucos capítulos retratando esses eventos, The Dropout, do streaming Star+, e meu interesse se aguçou ainda mais (a série é muito boa). Assim cheguei a esse livro, Bad Blood, escrito pelo jornalista do The Wall Street Journal, responsável pelas fortíssimas acusações que culminariam no declínio de Elizabeth. O subtítulo desse livro traduzido em português é mais ameno em comparação com o da versão original em inglês, que se traduz em: "Segredos e mentiras em uma startup do Vale do Silício" (até hoje não sei por que livros e filmes trocam os títulos dependendo do país). De fato, durante sua ascensão, se tornando bilionária com fortuna estimada em 4 bilhões de dólares (Theranos chegou a valer 9 bilhões de dólares, com um pouco mais da metade das ações de posse de Elizabeth), Elizabeth teve de recorrer inúmeras vezes a falsificações, fabricações e distorções de conceitos e técnicas científicas.

Quando ingressou como aluna em Stanford, Elizabeth permaneceu estudando por somente 1 ano. Após isso, largou os estudos e fundou sua startup. Holmes argumentava que a Theranos produziria uma tecnologia que, a partir de apenas uma gota de sangue, seria capaz de realizar 800 testes sanguíneos, identificar doenças em estágios iniciais, reduzindo o custo de farmacêuticas, salvar vidas, apresentar maior precisão do que as concorrentes, e tudo em menos de 30 minutos. Outro slogan atrativo era o de que as pessoas não precisariam sair de casa para fazerem os testes, pois o dispositivo da Theranos, de tão pequeno e portátil, poderia ficar em nossas casas. Praticidade, conforto e precisão reunidos em apenas uma máquina.

O problema era conseguir entregar o prometido. O livro é rico em descrever as diversas tentativas para gerar o teste de uma gota. Pressão sobre funcionários, contratações de excelentes profissionais (Elizabeth buscava especialmente ex-funcionários da Apple, em parte por sua admiração por Steve Jobs), discussões em grupos, reuniões, o dia a dia no laboratório - todos esses eventos são muito bem detalhados, e narrados de forma atrativa. John Carreyrou, como outros repórteres, mostra qualidade em escrever um texto fluente, atraente e agradável de ser lido (nesse blog, tive boas experiências com livros escritos por outros jornalistas, como O Mundo é Plano, de Friedman, e Odebrecht, de Malu Gaspar). 

Muitas razões ajudam a compreender o fracasso em entregar o mecanismo que revolucionaria o setor de saúde. Uma delas é a insuficiente formação acadêmica de Elizabeth. Tendo cursado apenas um ano, ela era incapaz de entender o alcance e as limitações de seu projeto (comparando com o seu ídolo, Jobs, e também com Gates, esses eram auto didatas, o que ocorre em algumas áreas de conhecimento, como a computação. Entretanto, a área de saúde envolve tempo de experiência em laboratórios e testes empíricos. Esse conhecimento não é muito facilmente obtido sem a estrutura de ensino adequada). 

Uma segunda explicação é o ambiente corporativo extremamente hostil e tóxico da Theranos. A empresa não permitia que os empregados do setor de química dialogassem e trocassem conhecimentos a respeito do que estavam fazendo com outros empregados do setor de engenharia. Dessa forma, era como se cada grupo estivesse trabalhando em separado - o que soava estranho para funcionários advindos de empresas que aceitavam essa troca de informações. O limitado feedback que isso gerava jogava a produtividade da empresa para baixo, além de dificultar a superação de problemas.

O par romântico de Elizabeth, o indiano e milionário Sunny, homem inseguro, carente e arrogante, com práticas de gestão que relembravam a escravidão, praticava vários atos que humilhavam os seus funcionários. Sunny os despedia ao seu bel prazer, sem a necessidade de razões para isso. Bastava que um funcionário mostrasse um problema na tecnologia da Theranos, e isso despertava a fúria do indiano. Como essa prática se generalizou, criou-se um ambiente de medo, no qual funcionários preferiam não apontar os problemas do dispositivo, para que não perdessem os seus empregos. Novamente, o feedback era limitadíssimo. A propósito, como Elizabeth, Sunny também tinha parco conhecimento na área de saúde, se perdendo em explicações técnicas sobre como o dispositivo funcionaria. Sunny era o vice presidente da empresa. 

Apesar desses problemas, o carisma, a personalidade e a persistência de Elizabeth cultivava pessoas importantes e ricas. Colocando em números, na primeira rodada para obter financiamento de investidores, os chamados venture capitalists, Holmes conseguiu 6 milhões de dólares. Na segunda rodada, foram outros 9 milhões. Após essas rodadas, contratos unilaterais com empresas geraram novos fundos, como os 75 milhões da Walgreens, e os 30 milhões da Safeway. Poucos meses antes do escândalo que alteraria tudo, uma nova rodada de financiamento trouxe 430 milhões, sendo 125 milhões vindos do proprietário do The Wall Street Journal, Rupert Murdoch, o mesmo jornal que daria o golpe fatal sobre Elizabeth (um dos pontos fortes da série The Dropout é o dilema do funcionário, Carreyrou, que publicaria uma matéria contra os interesses do dono do jornal). 

Todo esse dinheiro veio acompanhado de fama e contatos políticos, como Barack Obama, a família Clinton, e o atual presidente dos EUA, Joe Biden. Elizabeth era bem conectada politicamente, com imagem ascendente pelas inúmeras reportagens de que participou, além de ser capa de importantes revistas. A proximidade de empresários, ou CEOs nesse caso, com políticos, foi explorada para obter leis favoráveis - prática denominada de lobby. Adicionalmente, o corpo de diretores da empresa contava com grandes nomes, como Henry Kissinger e George Shultz - personalidades que ocuparam cargos públicos de destaque, como Kissinger, que já foi secretário de Estado dos EUA. 

Todavia, o esforço de John Carreyrou em desvendar toda essa fraude, juntamente com a frustração de funcionários que aceitavam o risco de exporem o que ocorria na empresa para a mídia (a empresa os perseguia, com investigadores privados e ameaças de processos). Vale dizer que a Theranos contava com um dos maiores advogados dos EUA, e não poupava verba para intimidar possíveis ameaças. 

Os sucessivos escândalos fizeram com que vários contratos fossem anulados e que investidores debandassem - não sem antes tentarem recuperar parte do capital empregado, por meio de processos e ações jurídicas. O número de exames sanguíneos que tiveram de ser anulados foram de 1 milhão nos estados do Arizona e da Califórnia. Um ponto sensível da Theranos foi o de que ela colocou sua máquina - ainda sem comprovação de efetividade - para funcionar em exames normais. Muitos consumidores acreditaram na imagem de Elizabeth, e aceitaram se submeter aos exames. Para isso, Holmes também enganou os órgãos de vigilância de saúde dos EUA. Novamente fazendo um comparativo com o setor de computação: uma coisa é enviar aplicativos com bugs e problemas que serão ajustados com o tempo, outra coisa é enviar uma máquina com problemas para avaliar a saúde das pessoas. Em poucas palavras, o dispositivo que revolucionaria o setor de saúde da Theranos estava repleto de bugs e problemas técnicos. Elizabeth era incapaz de compreender essa limitação por conta de sua insuficiente formação acadêmica.

A pressão que Elizabeth colocou sobre si mesma foi enorme (a sucessora de Steve Jobs?!). E quando ela convenceu investidores que poderia fazer isso, se viu em uma encruzilhada - estes a pressionavam para entregar resultado, visto as elevadas somas investidas. Na indecisão que isso causou, ela optou por mascarar as informações, mentir, falsificar e burlar. Não acho que sua situação era fácil. 

Ponto forte do livro é a construção da personagem Elizabeth Holmes, desde sua infância até quando decide largar a universidade e fundar uma startup. A série The Dropout também é muito feliz nessa construção. Na verdade, a série segue de perto os relatos do livro, com exceção na caracterização intelectual de Elizabeth. Na série, tive a impressão de que ela realmente era muito inteligente no seu campo. Por outro lado, no livro Bad Blood, com os relatos de funcionários e conversas envolvendo Holmes, tive a impressão de que ela pouco sabia.

Aos interessados, recomendo a série The Dropout. Ela tem um elenco de peso, como Amanda Seyfried (do filme Mamma Mia!), interpretando Elizabeth, e Naveen Andrews (o Sayid da série Lost), como Sunny - entre outros bons nomes. Ver a série primeiro ajuda na leitura do livro porque há vários nomes envolvidos na trama. A série ajuda a contextualizar quem é quem.

Finalmente, para colocar uma dose de política nessa resenha, fica evidente - pelo menos para mim - a importância de órgãos públicos de fiscalização e regulação. Não fossem estes, a Theranos estaria ainda atuando, colocando a vida de milhões em risco. Como argumento nesse espaço, uma sociedade funcional precisa de uma economia de mercado com a participação do governo. A dificuldade é encontrar um ponto de equilíbrio que concilie os dois sem prejudicá-los. Em particular, proteger o indivíduo sem retirar o lado dinâmico do mercado.





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