segunda-feira, 14 de junho de 2021

Resenha: Aurora (Friedrich Nietzsche)

Diversos aforismas, raciocínios penetrantes e análise da moralidade compõem Aurora  

aurora


Assim como nos livros anteriores, Nietzsche prossegue no estudo da ascensão da moralidade ocidental, enfatizando a influência da igreja católica nesse processo. Ao contrário dos livros anteriores, Genealogia da Moral, A Gaia Ciência e Além do Bem e do Mal, em Aurora o desenvolvimento da análise é de difícil recorte. O livro é composto por vários pensamentos sobre distintos tópicos. No posfácio há inclusive uma tentativa de mostrar um possível recorte por parte do tradutor da obra. 

Isso não chega a ser um problema, pois o próprio Nietzsche desejou que a obra fosse dessa forma. Mais ou menos no meio do livro, o autor recomenda que a leitura de Aurora deve ser feita aos poucos, para que o leitor tenha tempo para refletir sobre as mensagens. De fato, enquanto eu lia os aforismas, tive que dar uma pausa em algumas passagens e raciocinar mais detidamente. 

Apesar da falta de linearidade na obra, é possível perceber a mensagem principal: um olhar crítico sobre a moralidade vigente, e como ela afeta nos afeta. Uma frase que resume essa parte é: "não existe uma moral absoluta". Várias vezes a moralidade da antiguidade, especialmente a grega, será revista para evidenciar a inflexão de valores que tivemos nos últimos dois milênios. 

Na interpretação de Nietzsche, os gregos não usavam o conceito de pecado para suas ações - o pecado será contribuição e acréscimo do cristianismo. Os gregos buscavam a distinção pessoal, por meio de lutas ou atos que os colocassem em posição de destaque. Ganância, ambição, astúcia e dissimulação eram características desprovidas da avaliação negativa que possuem atualmente. Um exemplo de herói antigo é Ulisses, do livro Odisseia, de Homero, o qual recorre a esses expedientes para se livrar de desafios e avançar na sua jornada. Ainda nesse livro, Nietzsche cita a forma como os deuses são tratados e a contrasta com a do cristianismo. No primeiro caso, os deuses aplaudem os feitos de alguns homens (até contribuem para isso ao intervir diretamente em batalhas), enquanto no cristianismo, todos são pecadores e tentam expiar suas culpas perante o todo poderoso. 

Em relação à felicidade, Nietzsche defende que valores, costumes e moralidade não são fontes de felicidade. Não têm essa preocupação e tampouco a intenção. A moralidade pode simplesmente emergir como forma de controlar povos e grupos, de homogeneizar o comportamento individual, de forma a facilitar a submissão desses últimos. Em essência, a moralidade é a imposição de um padrão de comportamento sobre os demais. 

Ponto interessante da obra é, como tratado nos livros anteriores, a análise da sociedade em seu sistema de mercado. Nas obras anteriores, o autor chamou a atenção para a crescente necessidade de trabalhar e produzir. Apontou a virada no preconceito relativo ao trabalho. No passado, era desonroso trabalhar, principalmente para nobres. Todavia, com a ascensão da economia de mercado, tornou-se pouco honroso o ócio. O indivíduo pouco afeito ao trabalho, contemplador, passou a ser mal visto por seus pares. 

Ao contrário dos livros anteriores, neste essas observações foram relacionadas com conceitos próprios do autor. Houve maior preocupação de desenvolvimento desse tópico, incorporando-o com o pensamento núcleo de Aurora. Segundo Nietzsche, o desejo de se enriquecer de forma contínua, por vezes adotando atos ilegais, decorre de nossa "ânsia de poder". Vontade de poder é uma das principais ferramentas do pensamento nietzschiano, o qual é colocado como objetivo precípuo em nossas ações e pensamentos. À pergunta "por que fazemos o que fazemos?", qual fator determina esse processo? A resposta é poder. Queremos ascender. 

O acúmulo de riqueza carrega consigo maior poder social. Desta forma, há a conexão entre a busca desenfreada de patrimônio com o desejo de poder que cada indivíduo possui. Na época atual, nos diz Nietzsche, "a terrível impaciência de ver o dinheiro acumular-se muito lentamente, e um prazer e um amor igualmente terríveis pelo dinheiro acumulado. Nessa impaciência e nesse amor, porém, revela-se novamente aquele fanatismo da ânsia de poder".

Como nas demais obras, há discussões de vários temas, com raciocínios penetrantes e sutis por parte do autor. Em alguns desses momentos, a recomendação é realmente parar e pensar um pouquinho para verificar a mensagem que Nietzsche nos quer passar (pode-se também ignorá-los e continuar com a leitura, dada a dificuldade de entendê-los - recorri a esse artifício algumas vezes).

Essa foi a quarta resenha de obras escritas por Nietzsche. Caso procure pelos outros textos, basta clicar nos títulos indicados no primeiro parágrafo.







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