terça-feira, 20 de abril de 2021

Resenha: A Gaia Ciência (Friedrich Nietzsche)

Nietzsche tece críticas à moral, à modernidade e à ciência

a gaia ciência


Essa é a segunda resenha que escrevo de Nietzsche, um livro que pode ser visto como complementar ao Além do Bem e do Mal.  Como disse na primeira resenha, os livros de Nietzsche não são fáceis de serem compreendidos, especialmente se apenas um deles for lido. A recomendação é que se leia outras obras de sua autoria, pois ele vai revelando conexões de seu pensamento que são dadas de forma dispersa nos seus livros. Como economista, gosto de lê-lo porque ele apresenta novos horizontes para refletir - um dos pontos positivos dos filósofos.

Em a Gaia Ciência, Nietzsche se mostra otimista com o futuro da humanidade, ou pelo menos com aqueles de espírito livre, que enxergam e vivem fora do eixo da moral, construtores de virtudes, os indivíduos com vontade de potência, de avançar, criar, serem desafiados, derrotados, e levantarem para novos desafios. Em uma palavra, os corajosos em viver. 

Aliada a essa defesa está uma constante crítica aos modos contemporâneos, à busca de elevar a produtividade, de trabalhar cada vez mais: "a era mais laboriosa de todas – a nossa era – não sabe o que fazer com tanto trabalho e tanto dinheiro, além de produzir cada vez mais dinheiro e mais trabalho". O deslocamento do preconceito contra o trabalho, de séculos passados, se torna contra o ócio. Essa passagem fornece um exemplo do que falei no início da resenha: o livro nos ajuda a pensar e refletir. Antigamente, pelo menos para a aristocracia, trabalhar não era algo honroso, hoje se tornou um dogma. Sofre sanções morais quem não trabalha. Por que essa mudança? Quem a operou?

A ciência também sofre críticas com o modo, segundo Nietzsche, de buscar a "sua verdade", principalmente pela análise da causalidade. A tentativa de explicar o mundo de forma mecânica e, por isso mesmo, em contraste com a forma como Nietzsche o interpreta, como um ambiente de múltiplos significados e sentidos, é vista como simplista e estreita, tendendo a empobrecer o sentido da vida para os seres humanos - daí a crítica do parágrafo anterior sobre uma vida direcionada apenas ao trabalho e ao acúmulo de dinheiro: para Nietzsche, são formas de viver que limitam as possibilidades do homem, estreitam a sua visão.

Uma das ideias centrais da obra é o eterno retorno, conceito que mostra a circularidade de nossas ações e objetivos na Terra. Esse termo, se não estou enganado, não aparece durante o livro, mas está subtendido em várias de suas passagens, como nossa tentativa de levar uma vida como "artistas" - Nietzsche afirma que todos somos artistas, no sentido de fingir o que realmente somos; às vezes acreditando nesse disfarce. Ainda que usemos esse véu para nos escondermos, cedo ou tarde enfrentaremos parte da realidade, as contradições dessa máscara. A insatisfação com a vida que sempre volta e a felicidade que sempre foge de nós pode criar ressentimentos, e estes modelar a forma como seremos, e na verdade somos. 

"Deus está morto". Ao fazer essa afirmação, Nietzsche nos diz que novos modos de compreender a vida surgirão, formas não limitadas por valores morais. A queda de Deus é relacionada com o enfraquecimento dos dogmas cristãos. O homem se tornaria mais solto, mais leve, sem o fardo opressor das sanções metafísicas representadas pela Igreja. Em outros livros esse ponto voltará a ser explorado. 

Outros conceitos também aparecem, como o instinto de rebanho, nossa tendência (contemporânea) de querer obedecer, seguir alguém - uma forma, para Nietzsche, de fraqueza, pois abdicamos do protagonismo. Em oposição, estariam os mais fortes, os de espírito livre, conforme explicado anteriormente. 

As divisões do livro podem parecer, a princípio, aleatórias, todavia, não o são em sua totalidade. Nietzsche inicia discutindo o comportamento dos indivíduos presos ao instinto de rebanho, suas consequências para a formação da sociedade, bem como a moral envolvida nesse processo. Posteriormente, mostra o que seria as pessoas fora desse campo, os de espírito livre. Se aproximando do final, o autor descreve uma nova forma de ver e viver a vida ("viver perigosamente"), com coragem, sem conformismo. Nessa parte o título da obra dialoga de forma mais próxima com o seu conteúdo. 

Como o livro da resenha anterior, não considero um livro fácil de ser entendido. O próprio Nietzsche gosta de colocar essa dificuldade - o que vejo com bons olhos, um desafio para o leitor. Outra vantagem do livro são os inúmeros questionamentos e observações sobre temas diversos, sem uma conexão direta com o objetivo da obra - momentos que geram reflexões. No geral, é uma leitura desafiadora, mas que vale a pena no final.


Um comentário:

  1. Acredito que viver é uma arte, não se trata de uma rebeldia ou afronta as várias e vários tipos de se viver ou ver a vida em " si", ver as coisas e sentir de jeitos e formas diferentes .

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