quinta-feira, 13 de maio de 2021

Resenha: Genealogia da Moral (Friedrich Nietzsche)

Nietzsche fornece teoria sobre a criação da moralidade

genealogia da moral


Genealogia da Moral, ao contrário dos livros anteriores, Além do Bem e do Mal e A Gaia Ciência, tem linguagem menos rebuscada e menor uso de aforismas; Nietzsche parece menos preocupado em "esconder" o seu raciocínio - lembrando que, segundo o próprio autor, os seus escritos são para serem entendidos apenas pelos seus leitores, os de espírito livre. 

Na obra, Nietzsche explica como a moralidade religiosa, especialmente a cristã, se estabeleceu de forma definitiva em mentes e corações humanos. Para isso, há uma investigação sobre a criação de valores. Quem decidiu o que é certo e errado? O que é bom e ruim? Foram os nobres, os corajosos, audaciosos, que estabeleceram, inicialmente, essa distinção, sem a intenção explícita de impor qualquer moralidade. 

Todavia, os indivíduos da escala social mais baixa, os subordinados, que recebiam ordens, escravos, fracos, conseguiram reverter a moralidade vigente. Essa passagem é chamada de a "revolta dos escravos", quando, guiados principalmente por sacerdotes, a valoração se inverteu - o belo passou a ser visto como feio. Características como a ambição, o desejo, a volúpia, passaram a ser criticadas, dando lugar para a compaixão, a humildade, o amor ao próximo, sendo vistos como virtudes - qualidades que ajudavam justamente os desfavoráveis.  

Nietzsche denomina os responsáveis dessa inversão de valores de ressentidos. Os ressentidos seriam não somente os líderes desse novo paradigma, mas também todos os seus devotos e seguidores, os que formam o rebanho - o instinto de rebanho. Como em outros livros, os socialistas recebem críticas pelo ressentimento que sentem com os ricos e abastados. Nietzsche afirma que estes constroem teorias para disfarçar esse sentimento - são artistas. Não somente socialistas, como também anarquistas, niilistas, entre outras correntes, são vistas como puro ressentimento. 

Cabe, portanto, questionar, como essa inflexão na moralidade ocorreu? Como a "consciência pesada" surgiu? Essa é uma das partes mais interessantes do livro, a qual se utiliza da relação entre credor e devedor para responder a esses questionamentos: "Mas de onde veio a força dessa ideia tão antiga, tão enraizada, talvez não mais exterminável, essa ideia de uma equivalência de dano e dor? Eu já adivinhei a resposta: foi na relação contratual entre o credor e o devedor (...) O mundo conceitual moral da “culpa”, da “consciência”, do “dever”, da “sacralidade do dever” possui suas origens nessa esfera, portanto, no direito das obrigações – e, assim como o começo de todas as coisas grandiosas na Terra, seu começo foi por muito tempo e sistematicamente regado pelo sangue".

Através da relação credor/devedor, construiu-se entre nós humanos o sentimento de "estar em dívida" com alguém. Paulatinamente essa sensação evoluiu e se desenvolveu para dar origem à consciência pesada - em cuja trajetória artifícios indeléveis para nossa memória foram usados, como punições sangrentas sobre quem não cumpria suas "obrigações". Segundo Nietzsche, portanto, a consciência pesada é algo criado, forjado por humanos. Os primeiros sacerdotes incorporarão a ela o sentimento de culpa, pavimentando o caminho para a ascensão da moralidade religiosa: surge o pecado

Mas tudo pode mudar em decorrência da chegada do grande homem, o homem do futuro, aquele que se coloca fora da moralidade vigente, quebrando barreiras e mostrando novas formas de viver. César, Napoleão e Goethe são exemplos desse tipo de indivíduo. A possiblidade da reversão do atual arranjo moral mostra um dos conceitos mais famosos e interessantes, o do eterno retorno

Fico na dúvida se este mundo imaginado por Nietzsche seria factível. O que ocorreria se muitas pessoas pensassem que fossem esse "grande homem"? Deixariam de cumprir as regras, leis e a obedecer contratos. A sociedade se tornaria inviável. O famoso escritor russo, ícone da literatura universal, Dostoiévski, refutou essa teoria no livro Crime e Castigo, quando o protagonista, homem medíocre, se considerava acima da moralidade vigentePor outro lado, caso tivéssemos pouquíssimos desse tipo de humano, talvez o mundo de Nietzsche pudesse existir, como foi o caso dos impérios comandados por César e Napoleão. 

Além desse núcleo, o livro apresenta conceitos famosos, como a vontade de poder e a moralidade da compaixão. Um dos pontos que mais admiro em Nietzsche é a sua enorme capacidade interpretativa, conseguindo extrair sutilezas de diversos fenômenos da sociedade. Dessa forma, para além do argumento principal da obra, o leitor terá contato com análises de tópicos diversos. 

Ao explicar o surgimento da moralidade, questionar o valor da verdade, e o porquê de seguirmos determinado código de conduta, às vezes sem perceber ou questioná-lo, apenas tomando-o como dado, Nietzsche nos faz refletir e pensar um pouco mais sobre os valores existentes. 





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