terça-feira, 9 de agosto de 2022

Resenha: Progressividade Tributária e Crescimento Econômico (Manoel Pires)

Livro oferece retrato do sistema tributário internacional e nacional

brasil imposto regressivo consumo


Progressividade Tributária e Crescimento Econômico é um livro composto por artigos que destrincham a área tributária tanto internacional quanto nacional. A estratégia consiste em mostrar como o sistema tributário funciona na maioria dos países, para depois contrastá-lo com o sistema brasileiro. Adicionalmente, justificando, em parte, o título da obra, avalia-se como alterações no sistema tributário do Brasil poderia contribuir com o crescimento da produção. 

Nas primeiras páginas, Manoel Pires assinala que há um equívoco ao relacionar meritocracia com riqueza, uma vez que esta última pode advir de variadas fontes que envolvem a ausência do esforço individual, como o recebimento de heranças. Desta forma, a progressividade tributária, isto é, indivíduos com maior capacidade de geração de renda pagam maior quantidade proporcional de impostos, seria o mecanismo para permitir a existência da meritocracia. A progressividade tributária, ao reduzir o hiato de renda entre ricos e pobres, possibilitaria menor discrepância de oportunidades - implicitamente neste argumento há a compreensão de que parte da tributação seria convertida em políticas públicas para impulsionar ainda mais os indivíduos localizados nos estratos de renda desfavorecidos. Embora não seja o foco e tampouco o intuito do livro, em geral políticas públicas direcionadas à educação básica, ao fornecimento de creches e assistência à saúde são opções com alto respaldo por estudos como formas de reduzir a desigualdade de renda e promover maior crescimento da renda. Em resumo, como escrevi aqui, quando o governo mira áreas com externalidades positivas, abre-se janela para incrementar o bem estar da sociedade.

Em todo o livro, é argumentado que a progressividade tributária não é prejudicial para o crescimento do PIB, pelo contrário, há evidências de que ela contribui para elevar a produção. Outros benefícios seriam maior equidade e bem estar social. Eu acrescentaria que sociedades menos desiguais são menos propícias a golpes de Estado e insurgências civis, como argumentado no livro Origens Econômicas da Ditadura e da Democracia, de Acemoglu e Robinson. Deve-se, todavia, ter o cuidado de não confundir maior tributação no geral, com progressividade tributária. Enquanto a primeira é prejudicial ao crescimento, a segunda, por mitigar problemas sociais, pode ser benéfica. Finalmente, e é um ponto controverso e delicado, apesar do livro afirmar que a relação entre progressividade tributária e crescimento é positiva, há estudos questionando este resultado. Eu diria que é uma área em forte debate na Ciência Econômica, mas com indicação de que a progressividade tributária guarda efeitos positivos para a economia (Dica: quando o assunto envolve ciência, temos de argumentar com base em consensos e evidências, e não em "verdades" inquestionáveis).

Das características de um sistema tributário bem ajustado, pode-se citar a neutralidade, a simplicidade e a transparência. No caso brasileiro, por exemplo, falhamos fortemente nestes 3 pontos. Por neutralidade, diz-se que o imposto não afetaria as decisões econômicas, ou seja, não causaria distorção alocativa dos recursos. Se olharmos para a Zona Franca de Manaus, temos estranheza ao perceber que empresas que se localizariam em centros industriais, como São Paulo, optam pelo norte do país para se beneficiarem da isenção de impostos. Há aumento no custo do transporte, chegando com preços mais caros aos consumidores. Típica distorção de alocação. No caso da transparência, todo consumidor que compra um bem importado sofre com vários impostos em cascata. Quando comprei o meu Playstation 4, me assustei com a tributação sobre ele (mais de 50% do seu valor foi em impostos) e escrevi este texto aqui mostrando todos os impostos que incidiram sobre o seu valor. Spoiler: o vilão foi o IPI (imposto sobre produtos industrializados). A falta de simplicidade no sistema tributário brasileiro é fortemente sentida principalmente por empresários e grandes empresas, as quais necessitam de pessoal especializado para entrar na selva dos impostos e evitar cair em armadilhas e pagar multas. 

Caminhando para as práticas tributárias mundiais. Há dois modelos utilizados pela maioria dos países. O primeiro é o modelo dual nórdico, em que há uma taxa de imposto constante sobre rendimentos de capital e uma taxa progressiva sobre rendimentos de pessoa física. O segundo é o allowance for corporate equity (ACE), no qual parte do rendimento da empresa é isentado de tributação de acordo com um cálculo que mostra qual é o rendimento "normal", aquele livre de risco. O Brasil, por exemplo, adota variedades destes dois modelos.

Sobre informações úteis e relevantes para o debate tributário, eu destaco 3 delas. A primeira é de que observa-se, mundialmente, uma queda da tributação sobre pessoas jurídicas (IRPJ), enquanto há uma elevação da tributação progressiva sobre pessoas físicas (IRPF). Em outras palavras, há a preocupação de endereçar a pauta de redução da desigualdade de renda por meio de impostos progressivos, ao passo que para as empresas há o objetivo de reduzir os obstáculos para o seu crescimento. A segunda informação, especialmente relevante para o Brasil, é de que a capacidade de arrecadação mundial por meio de impostos sobre grandes fortunas é baixa. Desconfie de políticos e partidos que justificam gastos e programas públicos com o financiamento pela tributação sobre essas grandes fortunas. Uma explicação para esse resultado é a facilidade de deslocar a fortuna com cliques no smartphone. Outra evidência do baixo potencial de geração de receita deste imposto é a queda de países da OCDE que a utiliza. No último levantamento, apenas 4 países ainda adotavam esse imposto. A terceira informação é a de que há crescente esforço dos países em tributar a economia digital. Pela economia digital, gigantes multinacionais colocam suas sedes em paraísos fiscais (países com baixíssima tributação) e vendem os seus produtos e serviços nos demais países, evitando desta forma o pagamento de tributos. Há propostas de tributar estas empresas no local onde o consumo de seus serviços ocorre. Além disso, temos a proposta de imposto mínimo de 15% sobre todas estas gigantes, independentemente do território. 

As análises do sistema tributário brasileiro indicaram que temos problemas potenciais (surpresa!) como o i) excesso de tributação sobre a contratação de trabalhadores, ii) baixa progressividade tributária, e iii) sistema tributário complexo. A figura abaixo, extraída do livro, elucida um dos nossos problemas.

progressividade consumo


Em comparação com países ricos da OCDE, tributamos muito mais o consumo do que outras formas de arrecadação. De toda a arrecadação tributária brasileira, 48,2% veio do consumo (em 2019). O lado prejudicial é que famílias e indivíduos de baixa renda têm de dispender, proporcionalmente, elevada parcela de suas rendas para o consumo, enquanto pessoas de nível de renda mais elevado, sempre proporcionalmente, são menos oneradas. Por isso a conclusão de que a tributação pelo consumo é altamente regressiva (tributa proporcionalmente em maior peso os grupos menos capazes de gerar renda).

A única crítica que tenho a esta figura (e ao livro) é a ausência de comparações do Brasil com países semelhantes, emergentes e em desenvolvimento - as comparações ocorrem em maior grau com países desenvolvidos. Em geral, países de renda média e baixa utilizam a tributação sobre consumo para arrecadarem impostos, pois estas nações apresentam enorme setor informal, o qual escapa dos impostos. Consequentemente, a tributação pelo consumo consegue "pegar" todos os cidadãos. Se a figura anterior tivesse comparado o Brasil com países que também apresentam grande setor informal, a tributação sobre o consumo não seria tão divergente.

Outro capítulo de destaque é o de Nelson Barbosa, mostrando como o gasto tributário (desoneração fiscal) brasileiro segue mais ou menos o percentual aplicado por outros países. Mais do que isso, o autor defende que reduções drásticas de desonerações são difíceis tanto por atingirem grupos politicamente bem posicionados, como os agricultores, quanto pelo fato de que as desoneração estarem espalhadas em vários programas públicos (um pouco mais de 30 programas). Em apenas uma canetada é realmente difícil debelar esse ponto (quando a economia se mistura com a política, o resultado costuma ser um pouco nebuloso para os formuladores de política econômica).

Minha avaliação da obra é positiva. Ela me ajudou a atualizar conhecimentos prévios, e me forneceu novas informações, como a tendência da tributação mundial e o gasto tributário brasileiro. Os autores argumentam com rigor técnico e linguagem acessível (poderia ser um pouco mais acessível, mas ok). Minhas ressalvas estão, como eu disse, pela ausência de maior comparação do sistema tributário brasileiro com países de nível de desenvolvimento parecido, e também pela ausência de estudos questionando algumas relações, como a de maior progressividade tributária e crescimento. Entretanto, estas observações não prejudicam a leitura, que é instrutiva e esclarecedora sobre os sistemas tributários internacional e nacional. 





Nenhum comentário:

Postar um comentário