sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Resenha: Desordem: Tempos Difíceis no Século XXI (Helen Thompson)

Transição para a energia limpa, disputa pelo poder econômico entre EUA e China, e contestação das democracias se relacionam para formar a conturbada geopolítica atual

helen thompson


Tomei conhecimento deste livro pelo Financial Times por conta das críticas altamente positivas que recebeu. Disorder: Hard Times in the 21st Century (como ainda não há tradução em português, traduzi para Desordem: Tempos Difíceis no Século XXI), publicado em março deste ano - e por isso a ausência de uma edição em português, a qual creio que virá rapidamente -, se propõe a fornecer uma explicação para a conjuntura de instabilidade institucional, econômica e geopolítica nas principais regiões do planeta. Segundo alguns analistas, é o livro ideal para nos localizarmos e entendermos os atuais dilemas. 

O livro é de política. Salvo engano, tenho apenas uma resenha de um livro de política neste espaço, Como as Democracias Morrem. O estilo me lembrou muito os podcasts que ouço diariamente discutindo política e geopolítica: delimita-se o problema, discute-se possíveis ramificações e entrelaçamentos com outras questões, pontos positivos e negativos, e perspectivas futuras. Vez ou outra há algumas poucas indicações de soluções, mas não é o foco. O objetivo é oferecer um retrato do cenário internacional, e explicar como chegamos nele - não necessariamente como podemos superá-lo, até porque, como a própria Helen Thompson afirma durante o livro, "tentativas de estabelecer e manter a ordem política necessariamente produzem as sementes de desordens futuras", ou seja, é como se não houvesse um equilíbrio geopolítico pacífico e destituído de conflitos. Pelo contrário, sempre estaremos em uma arena propícia a convulsões. 

Thompson separa os problemas de hoje em 3 eixos. O primeiro é a transição para a energia limpa, de fontes renováveis e que agride em menor grau o planeta. Há vários capítulos detalhando pontos controversos, como o que vivemos atualmente: estaremos dispostos a pagar por contas de energia mais caras para financiar um planeta sustentável para as gerações futuras? Colocando de outra forma: aceitaremos uma redução no nosso poder de compra para acelerar essa transição?

A China é a maior emissora de carbono do mundo, os Estados Unidos (EUA) o maior produtor de petróleo, a Europa depende do gás e do petróleo russo, nações do oriente médio estão formando parcerias de abastecimento e compra com a China. Como lidar com esse quadro e migrá-lo para fontes renováveis? Thompson nos mostra que a questão do petróleo permeia discussões políticas e econômicas conforme esta commodity se tornou indispensável para o funcionamento das economias. Já teve dificuldades para entender o interesse dos EUA no oriente médio, por exemplo no Irã? Segundo a autora, por conta da localização deste pequeno país, ele pode interromper o fornecimento de 20% da gasolina mundial. Por apresentar grandes produtores de petróleo, bem como o conhecido cartel da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), o oriente médio pode gerar desequilíbrios em todo o mundo. Basta ler o noticiário e perceber as pressões que o atual presidente dos EUA, Joe Biden, tem exercido sobre a OPEP, pedindo para que ela aumente a produção de barris de petróleo por dia (os seus apelos têm sido ignorados, diga-se de passagem). 

A reportagem de capa da revista The Economist desta semana ilustra uma das fraquezas do apelo dos EUA para o aumento da produção pela OPEP: em um mundo globalizado e integrado, há alternativas. No caso da OPEP, basta olhar para o lado oriental e vislumbrar o país que mais importa petróleo no mundo, a China. O fortalecimento econômico da China fez com que ela se tornasse uma força que reduzisse a influência dos EUA em algumas partes do mundo. Veja a atual guerra entre a Ucrânia e a Rússia: novamente Biden tentou interferir em assuntos geopolíticos ao solicitar que a China não fornecesse recursos para a Rússia, o que tem sido desobedecido, principalmente desde a provocação dos EUA no Taiwan. Adicionalmente, enquanto países ocidentais, puxados pelos EUA e pela União Europeia, se esforçam em boicotar o gás e petróleo russo, quem tem contrabalanceado essas sanções? De novo ela, a China. A relação entre China e Rússia explica, em parte, a resistência da economia russa em não cair com as fortes sanções que tomou. 

O segundo eixo central dos problemas modernos é o econômico, o qual está estreitamente relacionado com o primeiro eixo. O livro dedica muitas páginas à Zona do Euro, união monetária de 19 países. Ao aceitarem uma moeda única, o euro, estes países perderam as políticas monetária e cambial. Há somente um banco central, o banco central europeu, o qual decide como será o patamar da taxa de juros, e quais os objetivos desta política. Um ponto de atrito é que quem realmente comanda este banco nos bastidores é a Alemanha e, portanto, há tentativas de convergir o seu comportamento para os desejos e ambições dos alemães (não somente nesta área, como em muitas outras, a Alemanha tem atritos com países membros, como a França, por conta da influência sobre a Zona do Euro). 

Quando um país está em crise, ele pode desvalorizar a taxa de câmbio e reduzir a taxa de juros para fomentar a atividade econômica e superar o momento adverso, todavia, quando este país faz parte de um bloco monetário, como a Zona do Euro, ele abdica destes atributos. Consequentemente, caso um país membro seja muito eficiente, ele terá vantagens no comércio intrabloco, e este é novamente o caso da Alemanha, acumuladora de superávits comerciais. Recentemente este bloco aprovou um pacote de gasto público para financiar a transição verde e superar as cicatrizes deixadas pela pandemia. Mas a questão central ficou no ar: como será pago a emissão dos títulos que sustentam o pacote? Até o presente momento, não há taxação de impostos sobre os cidadãos da Zona do Euro. Há nítido conflito entre a soberania do Estado nacional com a do bloco, com a Alemanha ditando os rumos deste último (observe que entrei na política nesta última sentença, o que ocorre praticamente o tempo todo no livro, ilustrando um de seus argumentos: a geopolítica, a economia e a democracia estão estreitamente conectados, são interdependentes, influenciando um ao outro).

Ainda no fronte econômico, os EUA têm o poder do dólar como moeda universal, conseguindo afetar todos os mercados do mundo. Por outro lado, sua hegemonia tem sido combatida pela ascensão da China, com inclusive tratados comerciais com aliados dos EUA, notadamente com a Alemanha. Logo temos, resgatando a questão da energia e a dependência da Europa com o fornecimento da Rússia, que os EUA são aliados da Zona do Euro, mas esta última precisa da Rússia. A Rússia tem ligações com a China, e a China com a Europa. Como a Europa apoiaria os EUA, visto que ela depende tanto da Rússia quanto da China? Por décadas os europeus têm discutido formas de mitigar a dependência de gás e petróleo com outros países, mas até hoje o quadro permanece o mesmo. 

Helen resgata o termo Chimérica, cunhado por Niall Fergunson no ótimo livro A História Financeira do Mundo. Chimérica é a mistura de China com América (os EUA). Ele elucida a relação de que os EUA mantêm vastos déficits comerciais com a China, e esta última os financiam pela aquisição maciça de títulos públicos. Desta forma, a China ajudaria a reduzir os custos de produção nos EUA, além de contribuir para uma taxa de juros baixa. Fergunson atribui parte da culpa da crise financeira de 2008 por conta desta relação. Por mais que os EUA tentem penalizar a China, eles precisam dela, sendo o inverso igualmente válido.

O último eixo é o democrático. As questões geopolíticas do petróleo e econômicas atingem as democracias por diferentes vias, sendo a do aumento do custo de vida uma delas. Um ponto central é como manter o apoio financeiro à população por programas sociais com dívidas públicas crescentes? A abertura financeira empreendida no século anterior possibilitou a expansão destes programas, ao fornecer financiamento barato, mas também abriu as portas para o crescimento do que a autora chama de excesso aristocrático em democracias. Elites conseguiram expandir os seus patrimônios, elevando a influência sobre a política. 

O caso crônico é o dos EUA. Além da dificuldade de lidar com a questão racial, de imigração e do consenso do perdedor em aceitar sua derrota nas eleições, os EUA tem testemunhado um relacionamento questionável entre as finanças com a formulação de leis e regulações, também conhecido como lobby (agentes representam grandes empresas e elites para influenciarem a formulação de leis). 

Na Europa, a questão democrática tem sofrido pelos dilemas entre delimitar a soberania do Estado com a institucionalidade da Zona do Euro, pela crescente insatisfação de parcelas da população com o mercado de trabalho, e pela ausência de compensação para ajustes fiscais - fruto da perda de mecanismos de correções, como a taxa de câmbio.

Desta forma, a problemática envolvendo a transição para a energia limpa, o poderio econômico dos EUA com a China, e a contestação das democracias são tópicos interligados. E Helen nos oferece este livro para compreendê-los. Ela nos diz que a pandemia acelerou contradições e insatisfações. 

Eu tentei ser breve nesta resenha, uma vez que a obra é densa em problematizar essas questões. Por exemplo, a autora entra em detalhes a respeito das disputas entre os partidos políticos da Itália e da Alemanha. Para quem conhece e tem interesse, imagino que seja agradável, mas não foi o meu caso. Como acompanho pouco a política interna destes países, a leitura desta parte foi monótona e pouco atraente. E essa é uma crítica que pode ser direcionada a esse livro: embora ele ofereça explicações para os desajustes internacionais, a discussão é centrada apenas nos EUA, nos países da Zona do Euro (mais a Inglaterra), na China e na Rússia, com alguns coadjuvantes, como a Turquia. Outras localidades, como a América Latina e o continente africano, são totalmente ignorados. Como discutir transição verde e aquecimento global e ignorar ao mesmo tempo o país com a maior floresta do mundo, o Brasil e a Amazônia? Vou um pouco mais adiante: o aumento da desigualdade de renda não estaria fomentando parte da insatisfação com as democracias? E se a resposta é sim, como ignorar o que ocorre nas regiões mais desiguais do planeta, a América Latina e a África? Thompson pouco discute a desigualdade de renda.

Adianto que essa delimitação no foco da discussão não afeta o livro, o qual é bom e ajuda a compreender os atuais dilemas geopolíticos. Mas é uma omissão que causa estranheza. Além disso, como adiantei no início, o livro "mastiga" incessantemente questões políticas, econômicas e de energia sem, no entanto, oferecer saídas, propostas, ou alternativas. É uma enorme problematização! Novamente, para quem gosta, leia feliz a obra. Eu prefiro discussões equilibradas, com delimitação explícita dos problemas e propostas de superá-los. Mas isso é uma questão de gosto. Deixo para o leitor a escolha.











 









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