sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Resenha: Uma História da América Latina Moderna: de 1800 até o Presente (Teresa Meade)

Estudando o passado para compreender os atuais desafios e suas raízes

história da america latina


Às vezes tenho a auto crítica de que eu deveria me interessar mais pelos assuntos da América Latina. Dado esse pensamento, resolvi ler o livro Uma História da América Latina Moderna: de 1800 até o Presente (no original, A History of Modern Latin America: 1800 to the Present - não encontrei versão em português da obra), de Teresa Meade. Embora eu tenha conhecimento dos acontecimentos históricos de nosso continente, uma leitura adicional pode contribuir para melhorar tanto nossa compreensão quanto aguçar nossa percepção dos desafios contemporâneos. 

A autora afirma que as atuais nações latinas foram erguidas por sistemas políticos e econômicos baseados no privilégio. Mesmo antes da invasão e genocídio europeu (historicamente cunhado pelo eufemismo "Descobrimento da América"), os povos latinos se organizavam pelo privilégio. Inicialmente, por lideranças indígenas. Posteriormente, os europeus conquistadores se tornaram os mandatários, seguidos por seus descendentes, e depois pela Igreja Católica. O ponto é que o privilégio está estreitamente arraigado e disseminado em nossa história. 

Em praticamente todo território foi implantado o sistema de escravidão e a utilização da terra por latifúndios. O livro destaca negativamente o Brasil nesse quesito. Além de ter sido um dos últimos países do mundo a abolir a escravidão, o fluxo deste comércio ostentava elevadas cifras. Segundo a autora, somente as importações de escravos do Brasil totalizavam por volta de 35% de todo o tráfico negreiro. Consequentemente, 63% da população brasileira era compreendida por escravos, ex-escravos e descendentes de escravos (aproveitando o recente falecimento do rei Pelé, acrescento que o seu bisavô foi escravo). 

Este tráfico de escravos (além das ondas de imigração de europeus) contribuiu para a miscigenação da população. A América Latina, em geral, é caracterizada pela mistura de diferentes raças - traço facilmente visto atualmente, especialmente no Brasil. Todavia, como Teresa ressalta, o preconceito racial não foi reduzido a despeito da maior parte da população não ser branca. 

A propósito, esse é um dos pontos fortes da obra. Ao contrário da maior parte dos livros de história que já li, esta obra tem uma grande preocupação em mapear e discutir as desigualdades de gênero e de raça, concomitantemente com a discussão da desigualdade de renda. Normalmente, na maioria dos livros, os argumentos se estreitam quanto à renda. Teresa inova ao alargar a discussão de desigualdade. 

A estrutura produtiva pautada pelos latifúndios se concentraria na monocultura, em um modelo exportador de commodities. Desta forma, a baixa diversificação produtiva faria com que as economias latinas apresentassem elevada dependência dos preços internacionais. Movimentos descendentes destes preços poderiam acarretar em recessões. Em outras palavras, o ciclo econômico dependia fortemente do humor externo. Essa descrição é importante porque muitas economias latinas ainda apresentam esse modelo de produção - crises econômicas são importadas devido a essa dependência externa. 

Até aqui temos uma região com elevada desigualdade e pobreza. Adicionalmente, os movimentos de independência política não representaram alterações estruturais na organização das economias. Pelo contrário, pouco foi feito para melhorar a vida dos indivíduos em situação de vulnerabilidade. Os governos que se formaram eram fracos no sentido de atender à população e em executar políticas e reformas. "Mudaram as estações, nada mudou".

Assim, a ascensão de líderes populistas caudilhistas (coronéis no Brasil) pode ser vista como um produto de uma sociedade extremamente desigual, permeada por privilégios e carente de serviços públicos. A população abraçava facilmente líderes carismáticos e teorias que prometiam o paraíso - no início do século XX o marxismo/comunismo entraria em cena. 

Também é no século XX que a presença e influência dos Estados Unidos (EUA) se consolida. Os EUA iriam interferir tanto militarmente quanto por meio de financiamentos para direcionar os rumos políticos dos países latinos. Aqui no Brasil, há evidência de apoio norte-americano no golpe militar de 1964. 

Os EUA, segundo a autora, teriam contribuído marcadamente para a chegada do neoliberalismo na América Latina, com o Consenso de Washington ditando o receituário econômico a ser aplicado. Na visão de Teresa, estas políticas teriam exacerbado os problemas latinos, como desigualdade, baixo crescimento e negligência com a população. 

No final do livro, questões atuais são levantadas, como o alastramento de protestantes (evangélicos), e o potencial da América Latina nos próximos anos em se aproveitar de seus recursos naturais, além de conservá-los, como a floresta Amazônica. A respeito dos protestantes, uma das hipóteses para entender essa onda é a de que, enquanto os padres e ministrantes do cristianismo são distantes da população, no protestantismo os ministrantes são próximos da população, compartilhando suas dificuldades. 

Uma História da América Latina Moderna: de 1800 até o Presente tem o mérito de apresentar e discutir eventos históricos críticos que contribuíram para a formação das nações latinas, bem como os desafios que enfrentam. Entretanto, tenho 4 observações sobre o livro que me incomodaram durante a leitura. 

A primeira é a de que não obstante a herança de privilégios e exploração dos europeus, me pareceu que a responsabilidade do atraso latino decorre somente dos Estados Unidos e do neoliberalismo. Se este livro fosse de ficção, estes dois seriam os vilões. Enquanto a autora acerta em mostrar intervenções inadequadas dos EUA, ela peca em não descrever o lado positivo dos EUA. Por exemplo, durante a industrialização do Brasil, os EUA ajudaram no financiamento de empresas. 

Sobre o neoliberalismo, e esta é minha segunda observação, Teresa não define o que é este termo. Ao não defini-lo, a sua utilização se torna vaga e pouco precisa. Em algumas oportunidades, a autora relacionou livre comércio com neoliberalismo - o que é uma simplificação incorreta. 

A terceira é que o livro carece de uma teoria/argumento que unifique os capítulos e forneça um quadro coerente. Tive a impressão que a preocupação foi apenas de apresentar informações. Na minha opinião, isso é muito pouco para um livro. Teresa poderia ter construído um arcabouço que conectasse melhor os 200 anos discutidos. 

Há exemplos de excelentes livros de história que tanto apresentaram eventos quanto construíram teorias para discuti-los. Por exemplo, Uma Breve História da Humanidade, de Harari, e  Aberto: A História do Progresso Humano, de Norberg, conseguiram fazer essa ligação entre fatos e teoria. 

Finalmente, minha última crítica é a de que a autora não considera as últimas décadas de evolução do pensamento econômico. Portanto, mesmo que implicitamente, ela se coloca favorável ao modelo socialista de produção. Obviamente, isso gera problemas na análise, como quando Teresa compara a economia da Venezuela com a chilena, conseguindo mostrar méritos do modelo bolivariano adotado por Nicolás Maduro (a hiperinflação, a falta de produtos e a desorganização produtiva da Venezuela não foram suficientes para mudar a conclusão de Teresa). Problemas subsequentes são críticas à austeridade fiscal, abertura econômica, privatizações e flexibilização do mercado de trabalho. Criticar essas políticas não seria um problema caso tais críticas fossem embasadas na argumentação em pontos positivos e negativos. Mas a autora critica toda e quaisquer políticas desta natureza. Não importa o mérito da adoção delas, são ruins por definição. Finalmente, a autora defende modelos econômicos fechados, com elevada intervenção do Estado e com baixa competição externa - o velho modelo de substituição de importações, um dos responsáveis pela estagnação econômica do Brasil. 

Novamente há exemplos de obras de história que contrabalancearam a apresentação de fatos com evidência empírica. Um ótimo exemplo é o livro História da Riqueza no Brasil, de Caldeira. É imperioso que livros de história (mas não somente estes) realizem esse contraste, pois fortalece a argumentação e fornece ao leitor mais informações.

Perdi um pouco do interesse na leitura quando percebi esses problemas (muita ideologia no campo econômico e pouca discussão baseada em trabalhos acadêmicos). Entretanto, continuei e terminei a leitura porque, apesar dessas ressalvas, há pontos positivos, como mencionei ao longo da resenha. 









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