sábado, 21 de outubro de 2023

Resenha: Vida para Consumo (Zygmunt Bauman)

Viver para Consumir e Consumir para Pertencer

gastar consumismo


Recentemente escrevi a resenha da principal obra de Zygmunt Bauman, Modernidade Líquida, na qual o autor mostra como vários componentes de nossas vidas, bem como o próprio funcionamento da sociedade, se transformaram de sólido (longo prazo, duradouro, previsível) para líquido (curto prazo, fugaz, passageiro, incerteza). O tempo (social) se tornou mais rápido. Uma das peças que integram o mundo de Bauman é o consumismo. E assim reli a obra Vida para Consumo, livro que li quando seguia o mestrado em Economia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), nos anos de 2014-2016 (tenho o costume de reler obras que me marcaram em algum sentido).  

O livro inicia com uma ótima citação de Pierre Bourdieu, afirmando que não há privação pior do que o daquela pessoa que luta para obter reconhecimento social, em ser vista como um ser, em uma palavra, em pertencer à humanidade, mas que falha nesse esforço. Vida para Consumo pode ser resumido neste sentido: a utilização do consumo para podermos fazer parte da vida social

Bauman avança o seu argumento utilizando 3 conceitos: Sociedade de consumidores, consumismo e cultura do consumidor. Sociedade de consumidores é o meio em que vivemos, o qual somos tratados como mercadorias. Mercadorias aqui perpassa a compreensão de Karl Marx de que nos vendemos no mercado de trabalho para recebermos salários. Na sociedade de consumidores, temos de ser uma mercadoria atrativa, vendável, que atraia a atenção das pessoas. Caso contrário, podemos não ser notados e, portanto, sermos privados de relações sociais, de amizades. Um exemplo é a crescente popularidade das redes sociais: nos transformamos em seres virtuais em parte para manter e aumentar nosso círculo. Quanto mais atrativo o nosso perfil, maiores as chances de sucesso.

Desta forma, devemos sempre ver vigilantes em relação a nós mesmos. Devemos, portanto, ressuscitar o nosso eu social reiteradamente. A construção do eu social na sociedade de consumidores ocorre pela aquisição das novidades, como roupas, dispositivos, música e entretenimento. Esses bens rapidamente se tornam obsoletos em um mundo que avança a passos cada vez mais rápidos.  Consequentemente, temos outro traço da sociedade de consumidores: indivíduos devem estar sempre em alerta para comprarem as novidades, e assim atualizarem os seus "valores" como membros. Não seguir essa tendência os colocariam em risco de se tornarem membros menos valorosos, perdendo valor entre seus pares. Como essa sociedade produz, inova e atualiza os seus produtos a taxas aceleradas, o esforço de segui-la deve ser redobrado. Em Modernidade Líquida, Bauman já nos dizia que a linha de chegada se distancia de nós conforme avançamos até ela. É uma corrida sem fim.

A sociedade de consumidores promete a felicidade nessa vida. Talvez essa seja uma de suas principais características em comparação com outras formas de reprodução de sistemas passados. A felicidade pode e deve ser atingida. Para isso, deveríamos comprar bens e serviços, desfrutar de seus benefícios e adquirir a experiência de usá-los. Comerciais elucidam essa promessa de felicidade. Todavia, ao mesmo tempo que tais promessas de satisfação e vida feliz abundam, essas mesmas promessas são sempre quebradas, pois uma vez atingido o ponto cobiçado, novos bens, serviços e promessas de felicidade são lançadas para reiniciar o ciclo e promover mais vendas. Somos, desta forma, iludidos e enganados por promessas de felicidade por meio do consumo.

O consumismo é o crescente fluxo de desejos. Se antigamente o consumo era regido principalmente para a satisfação de necessidades básicas, agora o objetivo é saciar desejos que não cessam de aparecer e de serem criados. Muitos desses desejos são superficiais. Mas não importa, o esforço de empresas para conseguirem vender suas mercadorias é acompanhado por maciço marketing argumentando que a compra destes produtos é indispensável para nossas vidas. Se todas as pessoas acreditam neste marketing, tratando um bem supérfluo como necessário, você também terá de seguir a tendência. Caso contrário, como discutido anteriormente, o risco será o de se tornar um membro inadequado a essa sociedade.

A sociedade de consumidores e o consumismo existem em meio a cultura de consumo. Nela o consumo é um investimento pessoal. Temos de melhorar nossa marca, nossa presença. Temos de melhorar nossa venda na sociedade; assim conseguimos fazer parte de círculos e subir socialmente. Nossa auto estima depende desse consumo.

A procrastinação e o longo prazo cedem espaço para a gratificação de curto prazo. Qual o benefício de postergar o consumo da última novidade do mercado em prol de poupança e investimento? Poupança não nos dá visibilidade, não gera satisfação. Não libera dopamina. Todavia, o consumo nos destaca. Assim, a troca do longo prazo pelo curto prazo vem acompanhada pela tirania do momento. O presente se torna o alvo. Em um mundo acelerado, temos de acelerar nossas compras, as trocas de bens que possuíamos e, portanto, elevar a taxa de desperdício

Uma ramificação desse mundo de consumo é a crescente individualização. A tradição, a vida familiar, a comunidade, no passado, nos definiam, agora, entretanto, dependemos primordialmente apenas de nós mesmos para mostrar o que somos. Todo fracasso pessoal terá como responsável nós. Esse fardo é pesado demais - embora Bauman não tenha explorado, aqui daria para discutir a ansiedade contemporânea que atinge quase todos. O consumo é uma forma de nos individualizar. Mostrar o que somos, nos caracterizar. Todavia, esse consumo é abastecido pela renda. Temos de estar em contínua movimentação, se atualizando, qualificando. É a tal da linha de chegada que na verdade nunca chega. Mas não importa, estamos a buscando ainda assim. Os cartões de crédito são meios para facilitar essa corrida.

Para Bauman, toda essa dinâmica ocorre para permitir a reprodução do capitalismo. A produção das empresas precisa de um fluxo. Temos a demanda promovida pelos consumidores para adquirir esse fluxo. Essa demanda é fomentada pela sociedade do consumo, que transforma o consumo em um ato obrigatório. Não temos opção. Ou aceitamos seguir essa regra, ou corremos o risco de sermos expelidos socialmente. 

Há as pessoas que não conseguem fazer parte dessa saga. Em geral, as famílias muito pobres e vulneráveis. São os excluídos desse sistema, com baixo valor social e reconhecimento. Bauman argumenta que o Estado Social existe para cuidar desses indivíduos. É uma forma de minimizar o efeito colateral da sociedade do consumo.

Eu particularmente discordo dessa definição (ou motivo de existir) de Estado Social. Vejo o Estado Social (ou o Estado de Bem Estar Social) como forma de corrigir falhas do capitalismo e melhorar o funcionamento da sociedade. Sempre haverá perdedores. O Estado pode auxiliá-los. Uma evidência do meu ponto é que o arranjo do Estado Social, por exemplo fornecendo aposentadorias, ocorreu antes da ascensão do consumismo.

Apesar da ótima contextualização do livro a respeito de nossa época e do conceito do consumismo, nem todo consumo ocorre da forma descrita por Bauman. Consumimos também como recompensa por nosso trabalho e gratificação pessoal. Não necessariamente porque queremos entrar em determinados círculos. Obviamente que há o consumo para superar a insegurança pessoal que temos, incluindo o consumismo definido por Bauman, mas não necessariamente todo consumo é um ato de consumismo. O ser humano sempre consumiu. Também não é uma característica unicamente pertencente à modernidade o ato de consumir para melhorar nossa imagem social. 

Minha última ressalva é que às vezes me parece que Bauman supõe existir uma "trama" do sistema para criar a sociedade do consumo. Discordo dessa interpretação. O que ocorre é o esforço de milhares de empresas através do marketing. Elas precisam vender suas mercadorias para sobreviverem no mercado. Há, portanto, intensa competição pela melhora de produtos e serviços. Bauman deixou de citar que nós consumidores também somos beneficiados pelas inovações de produtos, bem como pela enxurrada de mercadorias. A comodidade e o padrão de vida que desfrutamos hoje é algo inédito. É o mesmo equívoco de analistas que tratam o mercado financeiro como uma "coisa". Tanto o mercado financeiro quanto a pressão para consumirmos decorre do esforço de milhares de empresas e agentes.  

Essas observações não invalidam o livro de Bauman. É um livro muito bom. Não tenho dúvidas disso. Ele mais acerta do que escorrega na discussão e construção da sociedade em que vivemos. Gosto desse tipo de leitura porque ela me deixa mais atento ao meu comportamento e me educa a respeito do mundo em que vivo. 

No final das contas, existe o consumismo e existe o consumo normal. Resta a nós sabermos navegar neste mundo, com prudência e moderação. Nos conhecer talvez seja um bom passo inicial para não cairmos nas armadilhas mostradas por Bauman. 





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