sábado, 1 de julho de 2023

Resenha: Modernidade Líquida (Zygmunt Bauman)

O que deixou de ser sólido pode retornar ao seu estado anterior?

modernidade líquida


Zygmunt Bauman dispensa apresentações. Foi um autor renomado, com diversos livros publicados e traduzidos em vários idiomas. Ganhou notoriedade com a teoria da modernidade líquida, conceito que pareceu se encaixar e definir muito bem um mundo em constante transformação e incerteza. Neste cenário, nós humanos lutamos para encontrar pontos de segurança, os quais tendem a se afastar gradativamente de nosso alcance. Portanto, o livro Modernidade Líquida guarda grande importância para o pensamento de Bauman. 

No passado, Bauman caracteriza a sociedade como erguida em fundamentos sólidos. As relações sociais, incluindo a esfera do trabalho entre empregador e empregado, eram regidas tanto pelo espaço físico quanto por horizontes temporais prolongados. Seres humanos conseguiam ter uma noção de seus futuros, pois a ordem da sociedade era relativamente constante. Desta forma, indivíduos tinham âncoras para guiarem suas vidas. A liberdade individual precisa de ordem e de âncoras; um aparente paradoxo para os defensores de uma liberdade irrestrita de tudo o mais - na verdade, uma crença ingênua e incompleta da vida em sociedade. 

Uma vida em termos líquidos ou fluídos é aquela em constante alteração. Indivíduos precisam se adaptar constantemente ao ambiente que os cercam. A imobilidade é punida com o ostracismo da vida em sociedade - veja a luta dos idosos em dominar as atuais tecnologias e o desprezo que recebem ao não conseguirem. Relações líquidas são baseadas em momentos pontuais, fugazes; a leveza faz parte deste mundo. Tudo é solto, flexível, facilmente móvel e, portanto, incerto. Onde se firmar quando os fatores não são fixos? Uma sociedade líquida olha para o curto prazo, pois o longo prazo é incerto.

A questão espaço-tempo é primordial na transição da sociedade sólida para a líquida. Conforme o progresso se desvencilhou das amarras da tradição, o espaço perdeu importância. Isso decorreu pelo esforço em reduzir tanto o espaço quanto por encurtar o tempo para as tarefas cotidianas. Compare a comunicação na era Medieval. O espaço e o tempo eram empecilhos que significavam meses entre correspondências. Hoje, por outro lado, mensagens instantâneas pelo WhatsApp derrubaram o fator tempo - e com ele o espaço. Não precisamos de ocupar o mesmo espaço para nos comunicar. Se indivíduos não precisam ocupar o mesmo espaço para desenvolverem laços, como as relações sociais, econômicas e políticas ocorrem? 

Bauman nos diz que a ordem que permeia a vida em sociedade se torna frágil em um mundo líquido. A constante individualização das pessoas as tornam indiferentes ao que não impacta suas vidas. Comunidade e coletividade são afetadas por um mundo centrado cada vez mais no espaço íntimo de cada um. Todavia, como dito anteriormente, precisamos da ordem para nos guiar. Como "Deus tirou uma licença prolongada", quem ditará a construção da ordem? Em um dos possíveis desdobramentos, nós teremos de construir a ordem na qual viveremos. Mas como será esse processo? Em que nos basearemos? 

Há uma discussão do vazio existencial em livros de sociologia e filosofia. Recentemente, escrevi a resenha do livro A Vida é Difícil, de Kieran Setiya. Na obra, o autor ventila a ideia de que deveríamos achar e impor algum objetivo em nossas vidas. É uma forma de contornar a ausência de Deus - ou da ideia de destino. Freud, na obra o Mal Estar na Civilização, dizia que éramos infelizes porque a vida em sociedade afugenta nossos desejos. O livro O Mito da Felicidade argumenta que a felicidade é um conceito subjetivo. Cada um tem o seu próprio mundo, com todas as suas particularidades. De novo, voltamos ao ponto de Bauman: se Deus (a ordem estática de séculos) se aposentou, quem dita as regras? Aparentemente, nós mesmos. 

Um dos axiomas do mundo líquido é o de que não podemos parar, estagnar, ficar na zona de conforto por muito tempo. O progresso deve ser perpétuo. O avançar pode servir de subterfúgio para superar a incerteza e o vazio. Não há uma linha final, apenas uma corrida até uma suposta linha, a qual se afasta quanto mais nos aproximamos dela. Não há vitória ou realização definitivas. A incerteza reina. O que todos sabemos é que se ficarmos imóveis seremos engolidos pelas transformações da sociedade. Pense em algum conhecido ou colega que decidiu não correr atrás de objetivos na vida. Provavelmente ele/ela recebeu comentários negativos. Nosso valor moral/pessoal se torna atrelado a essa corrida ao progresso. 

Neste mundo de não realização definitiva, de constante aprender, adaptar e correr atrás de metas, podemos nos sentir ansiosos, incompletos e indeterminados. O autor relaciona os crescentes níveis de ansiedade, perda de sono e depressão com as exigências deste mundo líquido. Seria esses alguns dos fatores que ajudariam a explicar a ascensão da profissão de Psicologia? 

Procuramos lidar com essa pressão pelo consumo. Como mostrado no livro Nação Dopamina, a utilização de entorpecentes é uma das formas de abafar a insatisfação, o desconforto. Bauman não se restringe somente ao uso de drogas. O consumo é considerado em nível generalizado. Consumimos para dar vazão a sentimentos indesejados e buscar certezas em um mar de incertezas. Há uma troca no objetivo do consumo; enquanto no passado o consumo atendia a necessidades básicas, na modernidade líquida ele atende aos nossos desejos

Necessidades, quando atendidas, deixam de pressionar para mais consumo. Por outro lado, o desejo pode ser sempre criado e estimulado por diversas maneiras. Departamentos de marketing não existem por acaso. Somos constantemente bombardeados por propagandas, frases, celebridades, e slogans nos incentivando a consumir um pouco mais. Sempre com mensagens felizes e relacionando satisfação de vida com consumo. O mais recente truque do marketing foi nos dizer que consumimos para adquirir experiências. O consumo deixaria seu lado fútil e banal em segundo plano. Não consumimos, adquirimos experiência. É praticamente impossível achar algum indivíduo completamente satisfeito com o que possui. Aqui podemos conectar o progresso contínuo e sem linha de chegada com a sua intrínseca ansiedade com o consumo conduzido por desejos. A realização desses desejos gera satisfação por um breve período, até que mais tarde tanto o marketing quanto a sociedade nos empurrem para novos desejos - sempre com a promessa de realização pessoal, mas entregando momentos fugazes. 

O livro não fornece respostas para essas questões. O objetivo central de Bauman foi descrever o mundo em que vivemos, o deslocamento de uma sociedade sólida para uma modernidade líquida. Obras posteriores trabalharam em alguns pontos, como o do consumismo. Zygmunt Bauman tem vários méritos por detectar essas transformações e discuti-las. A obra é um convite para leitores que desejam compreender o mundo em que vivem.  



















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