sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Resenha: Nós do Brasil: Nossa Herança e Nossas Escolhas (Zeina Latif)

Autora mostra como nosso passado contribuiu para moldar o país em que vivemos

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Zeina Latif tomou para si uma tarefa de difícil realização, ao mesmo tempo ousada e ambiciosa: oferecer uma explicação sobre o porquê a economia brasileira não engata. Por que somos uma nação de renda média, com padrão de vida estagnado há pelo menos 30 anos em comparação com os países ricos. Com formação acadêmica (doutora pela USP) e experiência profissional (foi economista-chefe da XP), Zeina utilizou dessa mescla para guiá-la ao longo do livro.

Temos uma economia que não avança porque a nossa produtividade é baixa para padrões internacionais. Necessitamos de reformas estruturais que consigam destravar várias amarras ao crescimento. Na visão de Zeina, o principal elemento são nossas instituições, mais extrativistas do que inclusivas, no sentido dado por Acemoglu e Robinson na obra Por que as Nações Fracassam. Instituições inclusivas promovem crescimento econômico sustentável com menor desigualdade de renda, enquanto as extrativistas concentram poder nas mãos de poucos, comprometendo o bem estar geral para benefício de um pequeno grupo politicamente bem posicionado.

Tudo isso não é novo. Esse diagnóstico foi mais ou menos elaborado por Marcos Mendes na obra Por que O Brasil Cresce Pouco? O diferencial de Zeina, o que a coloca em um seleto grupo de autores que interpretaram o Brasil desde suas raízes até os dias atuais, é que ela considera a influência do nosso passado, de nossa herança colonial sobre o desenvolvimento do país. A autora também incorpora elementos de outras ciências, como a sociologia, para agregar mais informações e enriquecer sua análise. Embora ela seja uma economista, o livro não se resume apenas à economia como fonte de explicação de nosso insucesso na jornada em se tornar uma nação desenvolvida. 

Segundo Zeina, o Brasil apresenta características semelhantes com os vizinhos latinos. Todavia, destoamos deles ao percebermos que nossa escravidão durou mais tempo, tivemos monarquia, vários golpes de Estado, o investimento em educação foi historicamente baixo e negligenciado, o voto direto para presidente somente se iniciou em 1989, temos uma das Constituições mais complexas do planeta, e o patrimonialismo (utilização do Estado para elevar a renda, confusão entre esferas privada e pública) é extremamente arraigado na vida política. Vários países apresentam esses traços, mas aqui no Brasil eles foram exacerbados. E colhemos suas consequências. Este foi o maior desafio do livro: conectar essas características com o ambiente institucional, o qual afeta o funcionamento da economia. 

A imperiosidade de avançarmos pode ser vista pelo elevado custo-Brasil. Zeina destaca pelo menos 4 fatores críticos que ajudariam a compreender porque pagamos tão caro por produtos e serviços. São eles: sistema tributário disfuncional, infraestrutura precária, capital humano (educação profissional) deficiente, e insegurança jurídica. Estes fatores se relacionam, se reforçam, e geram o quadro atual. 

Dos vários desafios para rearrumar o país, o principal é o nó da política. Conseguir reformar o sistema político para que i) reformas possam ser avançadas, ii) para que os objetivos e interesses de políticos estejam alinhados com os anseios da população, iii) a utilização da coisa pública não seja para beneficiar poucos; iv) o patrimonialismo se reduza; v) para que tenhamos presidentes com espírito republicano, que olham para o longo prazo, em detrimento de metas curto prazistas, que colocam a economia sob risco. Como resolver este dilema, quando dependemos dos próprios políticos para realizarem essa mudança - e sabendo que muitos sairão perdendo com a melhora institucional? (Pense no orçamento secreto: qual político tem interesse em eliminá-lo?).

E aqui temos o maior atrativo do livro. Zeina passeia em 10 capítulos discutindo raízes e fatores para mostrar como chegamos até aqui. O primeiro trata da educação. No passado, nas décadas de 1950 e 1960, enquanto a população defendia "O Petróleo é Nosso", ou "50 anos em 5", as crianças brasileiras foram negligenciadas. Podemos voltar ainda mais, no período do Império, e percebermos o mesmo descaso, com amplo número de analfabetos e pouquíssimos centros de estudo. 

Em capítulo subsequente, levanta-se a questão: por que somos assim? Por que tantos brasileiros não seguem regras, até gabam de quebrá-las? Por que "o jeitinho brasileiro" existe? O que explica crenças que pervadem o cotidiano, como a de que indivíduos liberais são indiferentes aos pobres? Ou a de que precisamos da intervenção direta e forte do governo para a economia funcionar? O que moldou essas coisas? Mais do que isso, a autora explica o parco sentimento de identidade nacional em comparação com outras nações.

Outros capítulos discutem a democracia tardia, a influência sempre presente dos militares na política, e o menosprezo de alguns grupos das forças armadas com os civis. Zeina mostra citações e documentos que revelam altos oficiais das forças armadas desejando "resolver" os problemas do país, visto que os civis não estariam aptos para tal empreitada. Por que as forças armadas do Brasil pensam desta forma? (A propósito, a evidência econômica é contrária a uma suposta aptidão de militares em "resolver" pelo menos a parte econômica do país: até 1964, o país tinha 12 estatais. Quando os militares saíram do poder, tínhamos 440 estatais. E hoje um dos desafios é privatizar estas empresas criadas justamente pelos próprios militares - dados de Jorge Caldeira, no livro História da Riqueza no Brasil). Há a correlação de que em países nos quais tanto a democracia quanto a economia funcionam adequadamente, as forças armadas não interferem na política. Mas não é o caso do Brasil. 

Zeina argumenta pela necessidade de construirmos uma classe média robusta, participativa e politizada, que possa reivindicar melhores serviços públicos e maior transparência e prestação de contas do governo; pelo maior compromisso de servidores públicos com a população; e pela melhora da pesquisa acadêmica, muito concentrada em ideologia e presa na crença de que precisamos de um Estado intervencionista para industrializar o país. No caso dos servidores, a autora questiona a ausência de meritocracia na remuneração, e a estabilidade em praticamente todas as funções. No caso das universidades, defende maior rigor técnico na produção de artigos, os quais ajudam a moldar políticas econômicas. Também critica o viés do pensamento de esquerda nestes centros. Como estratégia, Zeina recorre à história para mostrar o porquê de termos este viés nas universidades - parte dele decorre da perseguição dos militares aos centros de ensino durante a ditadura de 1964.

Há outros temas, como o judiciário intervencionista, discricionário e com amplo poder, o qual se tornou fonte de insegurança jurídica no país (um dos lados negativos da Constituição de 1988 foi a concessão de poder desproporcional para a classe jurídica), e a necessidade de uma imprensa imparcial, preocupada com a apresentação de informações, e não na construção de narrativas políticas. 

O livro é agradável de ser lido. Não tem aquela linguagem fria, tão comum em livros escritos por economistas. Ao utilizar diferentes ferramentas para construir o seu argumento, Zeina oferece uma obra que contribui para a discussão e compreensão do Brasil. Coloco esta obra no patamar de outras clássicas, como Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, Carnavais, Malandros e Heróis, de Roberto DaMatta, e Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. Estas obras se diferenciam de muitas outras por explicar o Brasil perpassando pelo nosso passado, detalhando raízes coloniais e como elas ainda sobrevivem nos dias atuais. O Brasil de hoje carrega muito do Brasil de ontem. E Zeina foi feliz em conseguir conectar esses dois Brasis. Finalmente, ela também aponta escolhas que fizemos, que agravaram este resultado: não temos um futuro predestinado por conta de nosso passado, mas este limita nossas opções e nossa capacidade decisória. Cabe a nós superar estes nós.







2 comentários:

  1. Gostei da resenha, professor.
    Achei apenas que a expressão "destino predestinado" no último parágrafo soou estranha. Talvez "futuro predestinado" ficasse melhor.

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    1. Obrigado pela dica Demétrus. De fato, a expressão anterior estava estranha (acho que era um pleonasmo). Atualizei o texto usando a sua sugestão. Valeu!

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