sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Resenha: O Mal-Estar na Civilização (Sigmund Freud)

Civilização promoveu a felicidade dos indivíduos?

mal estar na civilização


Eu estava ansioso para ler esta obra, tanto pelo prestígio de seu autor quanto pela curiosidade de conhecer em maiores detalhes o seu pensamento, raciocínio, e a conexão de suas teorias com a proposta do livro. Fiz recentemente algo do tipo quando fugi da economia e fui ler biologia, A Origem das Espécies, de Darwin. 

No início do texto, Freud afirma que não estamos felizes, mesmo considerando todas as comodidades e avanços na sociedade: "the human being of today is not happy with all his likeness to a god". Nessa citação, ele faz um paralelo entre o padrão de vida desfrutado, algo visto como inexequível pelos antepassados, e a insatisfação com a vida, mesmo atingindo o que era sonhado no passado. A partir dessa premissa, a obra se desenvolve argumentando que a Civilização não foi construída ou pensada para promover a felicidade geral, mas primordialmente como meio de possibilitar o convívio entre seres humanos. 

Na avaliação de Freud, a vida humana é dura, difícil, marcada por frustrações. Percebendo isso, ainda que de forma inconsciente, recorremos a pelo menos 3 artifícios para amenizá-la: i) diversificar os objetivos almejados, reduzindo o impacto da frustração de alguns deles; ii) gratificações adicionais, como atividades de lazer; iii) substâncias entorpecentes, como o álcool. Embora úteis, essas estratégias funcionam apenas como paliativos para a dureza da vida. 

Nosso objetivo fundamental, segundo o autor, é a felicidade, a qual pode ser adquirida tanto pela busca do prazer quanto pela redução de dor, frustrações. Outra complicação é a nossa própria formação. Conforme envelhecemos, perdemos energia e vitalidade, contribuindo para a redução do bem estar. 

Chegando nesse ponto eu lembrei rapidamente dos modelos usados em economia. Em geral, eles partem do princípio de que os indivíduos desejam maximizar o bem estar. Para isso, tanto o consumo quanto a renda têm que aumentar. Há variações de abordagens, mas em resumo elas seguem esse caminho.

Pesquisadores de outras áreas criticam essa modelagem porque ela simplifica demasiadamente o ser humano. Até mesmo no próprio campo da economia há críticas. Talvez o ramo que mais vem ganhando terreno oferecendo alternativas é a economia comportamental, com obra famosas, como Rápido e Devagar e Nudge. Não por acaso, a economia comportamental reúne ferramentas econômicas com conceitos psicológicos

É uma questão difícil dado que felicidade não possui uma regra, um único caminho para atingi-la. É algo subjetivo. Cada indivíduo tem um mundo próprio no qual pondera valores de formas variadas. Freud faz essas observações no livro. Leitor, cuidado com livros de auto ajuda prometendo aumentar a felicidade com fórmulas prontas, como se fosse uma receita de bolo.  

Um ponto central de Mal-Estar na Civilização, e quando o livro se torna mais difícil de ser lido e entendido, é quando vários conceitos como superego, id, libido e ego são utilizados. Freud recorre a eles para explicar a incorporação do indivíduo na sociedade, a vida na civilização. Para esta ocorrer, o ser humano tem que renunciar a vários instintos, como o da agressividade, e se comportar como se tivesse outros, como o do amor ao próximo (para Freud, não o temos, ele é imposto pela civilização, mesmo antes da ascensão do Cristianismo). Enquanto a renúncia da agressividade gera a recompensa do amor (Freud cita o filho que não agride o pai, recebendo em troca a sua proteção), pela continuação da relação com a pessoa envolvida, o superego não é recompensado. O superego representa as restrições forjadas pela sociedade para que limitemos nossas atitudes, nossos instintos. Como este não recebe algo em troca pela sua não saciedade, esta se acumula, gerando duradoura frustração interna, uma infelicidade interior

Para ajudar a entender esse elo, Freud cita alguns exemplos, como o da sexualidade. Quando não atendida, o desejo tende a crescer, aumentando sua pressão para ser saciado. No caso do superego e a não agressão, na sociedade não podemos dar livre saída para esse tipo de comportamento. Portanto, indivíduos sofrem restrições, com impactos profundos e duradouros em relação à felicidade interior.

Essa castração em alguns instintos tem como principal ferramenta para sua implementação a criação da consciência e o senso de culpa. Mesmo que sozinhos, podemos se sentir culpados, com remorso, amedrontados em fazer algo considerado incorreto pelas leis da civilização (o pensar em fazer já pode ativar o senso de culpa). Aqui entra o papel da religião como reforço para garantir o cumprimento das regras. Também a religião fornece meios de amenizar a infelicidade e frustração dos indivíduos, prometendo recompensas em uma vida futura. Há uma interessante discussão sobre a influência da religião na sociedade durante todo o livro. 

Desta forma, o Mal-Estar ocorre porque vivemos em um meio no qual foi erguido não para promover a felicidade (e mesmo que o fosse, quem garantiria sucesso nessa tarefa!), mas para permitir o convívio mútuo entre milhões de pessoas. Consequentemente, instintos que poderiam colocar esse arranjo em perigo são extirpados, com variadas ferramentas, sendo a principal a consciência, que está em todo lugar. A frustração de nossos instintos gera um indivíduo ansioso, inquieto, insatisfeito. Há diversas consequências neste caso. Pensando em preencher essa insatisfação, este pode recorrer a excessos em outras áreas. Todavia, são paliativos, pois a raiz geradora e responsável desse mal-estar continua atuando. É uma visão sem dúvidas pessimista da sociedade. 

Obviamente que não tenho formação em psicologia, e talvez não conseguisse aproveitar a obra, em especial quando vários conceitos são usados sem as respectivas definições dos mesmos. Mas felizmente contei com a ajuda diária de uma jovem e talentosa psicóloga, Bárbara Attílio, com explicações didáticas e intuitivas (especialmente úteis para esclarecer os conceitos de superego, id e ego), o que facilitou a minha tarefa (era comum eu enviar áudios no WhatsApp de 1 minuto e ela responder com outros dois de 2 minutos). Ela me mostrou desdobramentos do pensamento de Freud que foram refutados posteriormente, outros que se mantiveram, e ainda outros que receberam contribuições adicionais. A propósito, essa parece ser a regra de grandes autores: ao longo do tempo têm teorias refutadas, outras se sustentam, e ainda há o grupo das que recebem modificações marginais. 





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