quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Resenha: Lições Amargas (Gustavo Franco)

Pandemia evidenciou problemas e deixou ensinamentos que não poderão ser esquecidos 

gustavo franco economista real


Gustavo Franco é um dos principais economistas do país, com sólida formação acadêmica, reconhecida contribuição na literatura de economia brasileira e participação ativa na estabilização da moeda durante o Plano Real. Recentemente se vinculou ao partido Novo, como possível ministro da economia em caso de vitória de João Amoêdo nas últimas eleições. 

Quando iniciei a leitura do livro, pensei que existiria um risco de queda na qualidade técnica da argumentação, algo parecido com o visto em Paul Krugman desde que este tomou uma guinada na direção do debate político, deixando o campo econômico em segundo plano. Isso é nítido nos livros A Crise de 2008 e a Economia da Depressão (Krugman economista), de excelente qualidade investigativa, e Argumentando com Zumbis (Krugman político), com visível queda no teor técnico nas análises. Todavia, meu receio foi por água abaixo conforme iniciei a leitura de Lições Amargas. Gustavo Franco não sofreu dessa patologia. 

A obra é um esforço em apresentar o quadro geral de dificuldades da economia brasileira, além de apontar medidas que carregam o potencial de reverter a situação. A palavra da vez é reforma. Inúmeras reformas, que possam modificar as regras do jogo e permitir a ascensão de uma economia capitalista. Segundo Franco, o Brasil ainda não chegou a construir um arcabouço no qual pudesse gerar uma economia de mercado. Ficamos no meio do caminho, sempre adiando reformas essenciais, e quando implementando-as, sendo de forma excessivamente suave e lenta, com parcos efeitos. Nas palavras do autor, "O Brasil ainda está preso a um anticapitalismo selvagem".

Há tópicos que recebem maior atenção dada a urgência presente, como a dívida pública e a abertura econômica. Franco assinala que o gasto público crescente sempre foi uma característica brasileira. O diferencial que ocorreu nos últimos anos é que a forma de sustentá-lo se modificou. Em um primeiro momento, a inflação foi usada para contornar o problema de restringir essa despesa. Com a estabilização da moeda em 1994, esse mecanismo não mais poderia ser empregado. A solução foi aumentar a carga tributária e o endividamento público, transferindo o fardo de ajustar as contas para a geração futura, ainda não nascida, portanto, ausente do debate público.

A conclusão é a de que não há atalhos ou mágicas: é necessário cortar despesas, alocá-las para setores com maior retorno social e desacelerar o crescimento do gasto. Sobre a abertura econômica, em especial a abertura comercial, a intenção de integrar o país na globalização é barrada por teses antiquadas e ultrapassadas como a do protecionismo e isolacionismo. Além desses fatores, o lobby de empresários, a gritaria de partidos e até mesmo pela população travam avanços nesse fronte. Escrevi certa vez que é um dos casos estranhíssimos do Brasil a defesa do protecionismo pela população, quando esta é justamente a parte que arca com os custos da política, ao passo que os benefícios afluem para poucos (as empresas com a proteção de mercado, os seus proprietários). No final, temos produtos de qualidade inferior a preços mais altos. Mas estamos, como muitos pedem e reivindicam, protegendo os produtores nacionais.  

Outra questão delicada é a reforma do mercado de trabalho. Durante a pandemia, aprofundou-se o arranjo menos formal entre empregador e empregado, conhecido como gigs. Esse termo expressa o contrato de indivíduos por meio de plataformas que descentralizam a relação entre trabalhador e empregador, como os aplicativos do Ifood e Uber. Diversos países estão discutindo modelos para se adaptarem a essa tendência, com destaque para a Alemanha. O Brasil seguiu caminho parecido, com a participação do governo complementando a renda de trabalhadores e modificando o contrato que este possuía. 

Outros pontos são as empresas zumbi (não lucrativas e, portanto, insolúveis, mas que permanecem no mercado por causa de subsídios públicos - fenômeno visto em outras localidades, como no Japão), a baixa taxa de juros observada nos últimos meses e o desenvolvimento da moeda digital, com Pix apresentando relevante função nessa direção.

O objetivo de discutir esses tópicos foi mostrar avenidas nas quais a economia brasileira pode melhorar o seu desempenho caso realize tais reformas. A abertura comercial, por exemplo, tem enorme potencial para incrementar a produtividade do trabalho e das empresas, gerando maior crescimento da renda e do emprego. Argumentei sobre essas reformas em uma série de textos, como a reforma fiscal, a reforma do mercado de trabalho e a abertura comercial. No livro, faltou argumentar como tais reformas colocariam o Brasil na trajetória de rápido crescimento, se aproximando das economias ricas e desenvolvidas. Franco se preocupou mais em apontar os problemas. 

Como o livro foi escrito durante a atual pandemia, obviamente ela recebe grande foco. No passado, precisamente em 1904, também tivemos problemas em convencer a população a se vacinar, na Revolta da Vacina do Rio de Janeiro. Até mesmo personagens ilustres do cenário brasileiro, como Rui Barbosa, reconhecido por sua capacidade intelectual, se posicionou contrário à vacinação. Como explicar esse tipo de comportamento? O leitor perceberá que muitos dos argumentos usados naquele tempo foram resgatados atualmente, prejudicando a superação mais rápida da Covid-19.

O autor considera que o país aprendeu com alguns de seus erros, como a "heterodoxia econômica, o charlatanismo fiscal e o curtoprazismo irresponsável". Será que aprendeu mesmo? Ainda vejo vários artigos publicados defendendo o abandono do teto do gasto, o câmbio de equilíbrio, o controle de contratos privados (por exemplo, limitando os juros incidentes), entre outras esquisitices sem respaldo na Ciência Econômica. Também leio com apreensão projetos de lei almejando implementar algumas dessas ideias (incorretas). Espero que o Gustavo Franco esteja correto a respeito desse aprendizado.

Lições Amargas é um livro que ajuda a entendermos os atuais desafios com linguagem simples, sem abandonar o rigor técnico nas análises. Para quem acompanha discussões dos problemas da economia, o livro pode parecer repetitivo em algumas partes, mas isso apenas reforça o fato de que estamos acostumados a conviver com problemas que não se resolvem, são teimosamente adiados. Franco resume esse traço nacional: "o Brasil é o país da procrastinação". 
















Nenhum comentário:

Postar um comentário