sábado, 16 de outubro de 2021

Resenha: Salvando o Capitalismo dos Capitalistas (Rajan e Zingales)

Autores mostram os riscos que mercados livres enfrentam, e o que fazer para contorná-los

salvando o capitalismo dos capitalistas


Esse é o segundo livro de Luigi Zingales que tive a oportunidade de ler. Dada a ótima impressão deixada pelo Um Capitalismo para o Povo, no qual o economista mostrou como um ambiente competitivo pode se deteriorar, abrindo espaço para uma economia permeada por medidas protecionistas, com baixo dinamismo e promovedora de desigualdade, eu iniciei a leitura com otimismo quanto ao nível da obra. Terminado o livro, posso dizer que não me decepcionei.

Para quem leu algum de seus livros, Salvando o Capitalismo dos Capitalistas vai parecer uma continuação do livro lido. Eu com minha mania de ler livros na ordem cronológica inversa, tive contato inicial com o Capitalismo para o Povo, publicado em 2012, e somente depois fui para Salvando o Capitalismo, publicado em 2003. O objetivo das duas obras é o mesmo: argumentar que mercados livres (autor intercala essa denominação com o termo capitalismo) é a melhor organização para produzir e distribuir bens e serviços, além de fomentar a melhora no padrão de vida das pessoas. É uma instituição que gera maior mobilidade social e oferece respostas para os atuais desafios.

O problema enfatizado é o de que esses mercados precisam de uma infraestrutura para que funcionem corretamente. Tal infraestrutura engloba leis antitrustes, respeito aos direitos de propriedade, rapidez no cumprimento das leis, padrões claros e transparentes de contabilidade e autoridades regulatórias e supervisórias efetivas. Sem esse arranjo, práticas que exploram os indivíduos podem surgir (como as vendas de ativos financeiros para famílias pobres na crise financeira de 2008), além de afastar investidores e empresários. O resultado seria uma economia disfuncional. 

A criação dessa infraestrutura necessita da ação do governo, sendo o setor privado é incapaz de ofertá-la. Pense nessa infraestrutura como um bem público e/ou externalidades (tenho textos sobre cada um desses tópicos aqui e aqui). O mercado percebe a necessidade de sua existência, todavia, o custo de erigi-la não é muito claro, o mesmo podendo ser dito em relação aos seus benefícios - o custo seria privado, mas o benefício compartilhado por todos, portanto, não haveria incentivo para dispender capital para criá-la. Um exemplo são as agências reguladoras. No caso do mercado financeiro, no Brasil a CVM foi criada para fiscalizar especialmente o mercado acionário, coibindo, por exemplo, a prática de insider trading. Um participante bem informado por causa de contatos com participantes do mercado (insider) pode tirar vantagem desse conhecimento e antecipar valorizações em algumas ações (um exemplo em nossa terra foi o de Luma de Oliveira em 2017). Enquanto esse indivíduo se beneficiaria, o restante seria prejudicado. Há, por isso, o incentivo de criar um órgão para fiscalizar esse tipo de prática. Todos se beneficiariam dele. Mas quem gastaria recurso próprio para sua existência? Além disso, suponha que uma empresa privada tenha criado esse órgão apesar das observações feitas anteriormente. Um ente privado ditará as regras para todo um mercado? E o conflito de interesses?

Dessa forma, o governo desempenha papel de destaque para a existência de uma economia com mercados livres. É justamente nessa tarefa que repousa o risco apontado pelos autores. Políticos podem criar leis que concedam privilégios para grandes empresas, para indivíduos bem conectados, ou para entidades que financiam lobistas. Práticas protecionistas e a utilização do erário público para beneficiar poucos grupos podem surgir dessa pressão sobre os políticos. A própria sociedade pode reivindicar esse tipo proteção. Aqui no Brasil, não há o coro a favor da proteção aos "produtores nacionais"?

Ao longo da história, os autores identificam momentos nos quais essa reversão de uma economia vibrante, portanto, com mercados livres (capitalismo), se deslocou para o capitalismo de compadres, ou capitalismo clientelista, ou ainda relationship capitalism, usando a expressão do livro (Krugman tem um livro muito bom sobre esse tipo de prática, aqui). O nome não é o mais importante, o que é relevante é ter em mente que no capitalismo clientelista as empresas passam a pautar suas decisões não por critérios majoritariamente voltados para produtividade e eficiência, mas pelas vantagens obtidas pelo governo, estas variando de créditos subsidiados, proteção de mercado e redução da competição internacional. Esse capitalismo clientelista é muito bem retratado pela descrição das práticas e forma de gerenciamento da Odebrecht com o governo brasileiro desde os anos 1980 por Malu Gaspar, no livro A Organização. Durante a sua leitura, tive ainda maior convicção de que estamos longe de um sistema funcional de mercados livres. Temos um relationship capitalism

Rajan e Zingales apontam o período pós Segunda Guerra Mundial (1945-1970) como exemplo de transição do capitalismo de livre mercado para o capitalismo de compadres, citando as alterações nas leis e regulamentos que possibilitaram essa reversão. Também mostram como a população apoiou esse movimento, com início nos EUA, no governo de Roosevelt, como forma de combater a Grande Depressão de 1929, e sua difusão para toda a economia mundial.

As contradições e limitações desse sistema ocorreram nas décadas de 1970 e 1980, quando o crescimento parou e a inflação se elevou, culminando na estagflação. Razões mais sutis perpassam pela baixa competição nos mercados, insuficiente incentivo para inovações tecnológicas e mercados financeiros subdesenvolvidos

No caso desse último item, é a especialidade da dupla o tema sistema financeiro. Os autores o colocam como peça central tanto para combater grupos de interesse quanto para promover uma economia funcional. No tocante aos grupos de interesse, mercados financeiros desenvolvidos fornecem fundos para pequenos empresários, empreendedores, startups e atraem maior competição. Esse movimento reduz a influência das empresas estabelecidas. Do lado do dinamismo, esses mercados, ao possibilitarem o surgimento de novas empresas, auxiliam na geração de novos empregos. Indivíduos podem diluir o risco de investir suas poupanças com as opções fornecidas pelo mercado financeiro. O livro é rico em argumentos favoráveis aos mercados financeiros, não se omitindo também em apontar suas falhas.

Na parte final, 4 recomendações são elencadas. A primeira é produzir uma economia aberta comercialmente e financeiramente. A segunda é combater a concentração de poder. No caso dessa, quanto maior a concentração econômica, maior será a influência política da empresa, com maiores chances dessa cooptar políticos e dobrar regulações para favorecê-la; e aqui temos a justificativa do título: salvar o capitalismo dos capitalistas. A terceira política é gerar uma rede de segurança para proteger indivíduos. Em um ambiente competitivo e com rápida transição tecnológica, empregos podem rapidamente se tornar obsoletos, bem como as habilidades e conhecimento dos trabalhadores. O governo pode mitigar esses riscos ofertando treinamento técnico e transferindo renda para os desempregados durante a transição. O princípio é muito parecido com o do prêmio Nobel de 2014, Jean Tirole, "proteger a pessoa, não o emprego". No presente livro, a frase usada é "insure people, not firms", o que guarda o mesmo sentido e espírito, embora com diferentes palavras. Por fim, a quarta recomendação é instruir o público para que este tenha noção de políticas que possa prejudicá-lo, ou de populismos fiscais, e que esteja apto para criticar e pressionar os políticos por melhores medidas e frear leis que possam enfraquecer o capitalismo, abrindo caminho para o capitalismo clientelista. Novamente fazendo um paralelo com o Brasil, anseio pelo dia que o público perceberá que proteger os "produtores nacionais" representa a piora de longo prazo da maioria dos brasileiros, e que os caminhoneiros, os "transportadores da riqueza nacional", apenas pleiteiam por privilégios em detrimento dos contribuintes, que arcariam com os custos por meio de maiores impostos para financiar essas concessões. 

O livro é muito bom, com prosa agradável e instrutiva. Os argumentos são apoiados por experiências históricas, com baixa utilização de dados - embora os leitores possam recorrer às citações de trabalhos acadêmicos - e de gráficos, o que poderia tornar a leitura menos fluente. A escolha dessa forma de escrita serve bem ao objetivo de informar o público. Observando os desdobramentos desde a sua publicação até os dias de hoje, o livro continua atual e importante para iluminar e ajudar o público a discernir entre medidas favoráveis e desfavoráveis defendidas por seus políticos.











 




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