Resenha: O Liberalismo Antigo e Moderno (José Guilherme Merquior)

Merquior mostra a formação, evolução e consubstanciação do liberalismo, além de apontar suas ramificações

Escolhi a leitura desse livro pelo interesse de aprofundar o meu conhecimento sobre a origem e o desenvolvimento do liberalismo a nível universal. No livro de Antonio Paim, História do Liberalismo Brasileiro, por outro lado, foquei no liberalismo a um nível mais local, especificamente o Brasil, todavia, como falei na sua resenha, a obra apresentou alguns probleminhas que comprometeram a sua qualidade, embora esta possua outros méritos. Felizmente esse não foi o caso de O Liberalismo Antigo e Moderno. 

José Guilherme Merquior tem fama de ser um pensador e escritor erudito, e de fato percebi o acerto do diagnóstico logo nas primeiras páginas. Na verdade, escrever um livro detalhando a formação e desdobramento de uma corrente política é trabalho árduo, que exige muita leitura e capacidade analítica, qualidades que são abundantes no seu livro.

O primeiro ponto que destaco é o de que não há somente um liberalismo. Desde sua formação, até mesmo antes de sua consubstanciação em liberalismo, pode-se identificar raízes que culminariam nesse movimento. Merquior nos mostra que na Idade Média alguns escritos pavimentaram o trajeto do liberalismo.

Autor de destaque nessa construção foi Thomas Hobbes, da obra Leviatã (continuo devendo uma resenha desse livro), na qual se discute o conceito de liberdade no sentido da proteção fornecida pelo Estado contra inimigos externos. Em troca, contudo, os indivíduos viveriam sob um regime absolutista. 

Da variedade de autores ingleses, como Stuart Mill, franceses, como Tocqueville, alemães e de outras nacionalidades, formou-se o liberalismo. Demarcação importante dessa evolução histórica é o surgimento do liberalismo clássico (1780-1860). Na excelente definição de Merquior, esse liberalismo pode ser entendido por 3 características: i) defesa pelos direitos humanos, ii) constitucionalismo, e iii) economia de mercado. A teoria dos direitos humanos, por exemplo, avançou na discussão da liberdade religiosa. É nesse recorte que autores famosos, fundadores da economia, contribuíram para esse pensamento, como Adam Smith e David Ricardo. 

Conforme as sociedades se modificaram e se transformaram, o liberalismo sofreu metamorfoses para se adequar aos novos tempos, bem como aos desafios que surgiram. Keynes é analisado e avaliado como um liberal com uma preocupação com o lado social. O britânico se distinguiu ao fornecer a solução teórica para a Grande Depressão de 1929, quando mostrou a necessidade do governo incentivar a demanda agregada por meio do aumento do gasto público. Esse gasto absorveria parte dos desempregados e recolocaria a economia para funcionar. 

Outra ramificação do liberalismo foi um resgate dos termos do liberalismo clássico, com a defesa da participação mais restrita do governo na economia, o neoliberalismo. Nessa corrente, os trabalhos de Mises, Hayek e Friedman são discutidos para situar o leitor. Senti falta de uma discussão mais aprofundada de Mises e Friedman, visto que Merquior dedicou várias páginas à Hayek. Talvez o contato em vida com Hayek o tenha influenciado, em parte, nessa decisão. Por outro lado, reconheço que seria difícil escrever uma obra com a ambição desta se aprofundando em vários autores. Provavelmente Merquior teve que optar pelo aprofundamento ou não de tantos outros nomes relevantes do liberalismo.

Há também o conservadorismo liberal, outro desdobramento do liberalismo, com a defesas do tradicionalismo (importância das instituições, cultura e valores), do organicismo (sociedade é um todo, e não somente a soma de seus indivíduos) e ceticismo político (aversão a formas revolucionárias de moldar a sociedade). Recentemente faleceu um dos maiores expoentes da modernidade dessa corrente, Roger Scruton. Lembro de ter lido em seu livro, Conservadorismo: Um Convite à Grande Tradição, de que o conservadorismo foi uma forma de frear o radicalismo do liberalismo, moderando-o de seus excessos. Mesmo hoje concordo com essa vigilância, principalmente contra os pregadores de "privatizações ilimitadas", como a ideia (jamais testada) de privatizar totalmente a polícia e a justiça. 

Outros autores analisados no decorrer do livro são Karl Popper (defensor de uma democracia com atenção aos mais desfavorecidos), Orwell, famoso pelo livro 1984, por suas críticas contra o totalitarismo, e por mostrar como o socialismo se degeneraria em ditadura, Aron (governo deveria participar na provisão de uma infraestrutura social, atendendo atuais desafios, como o da pobreza), Norberto Bobbio (mostrando a indispensabilidade da democracia na modernidade), entre tantos outros. Gostei muito da articulação de pensadores e ideias, juntamente com o mérito de suas propostas, para a sedimentação do liberalismo. Além de apresentar grandes nomes (eu pouco conhecia Aron e Bobbio, e agora ambos estão na minha lista de leitura futura), Merquior consegue sintetizar suas contribuições de forma simplificada, transparente e didática, o que reforça o seu alto domínio do tema. 

Desta forma, segundo Merquior (com a ajuda do posfácio de Hélio Jaguaribe, o qual me ajudou muito a refletir a obra de Merquior), o liberalismo é formado por 4 liberdades fundamentais. i) liberdade (positiva) de participar nos assuntos públicos; ii) liberdade (negativa) de não sofrer interferências ao capricho de terceiros; iii) liberdade (interior) de crença e de consciência; iv) liberdade (pessoal) para o autodesenvolvimento. Posteriormente, como a obra avança, o leitor perceberá como o liberalismo pegou do socialismo algumas ideias que promoviam o bem estar dos indivíduos, como o Estado provedor de saúde, de educação, e de condições mínimas para os desfavorecidos. Essa mescla apenas reforça a deformidade de desqualificar totalmente determinadas correntes de pensamento. Se por um lado o socialismo promoveu ditaduras, genocídio e o empobrecimento de indivíduos (este último ponto eu gosto de ressaltar nesse blog, por exemplo nesse texto aqui, e também  porque tenho vários companheiros que ainda exaltam as "virtudes dos regimes de Cuba e da Venezuela"), por outro, ao evidenciar a necessidade material de segmentos desfavorecidos, contribuiu para o combate à mazelas sociais. Merquior concede mérito a Karl Marx pela ênfase nas críticas ao tratamento dispensado aos trabalhadores no início da revolução industrial (Popper, na obra A Sociedade Aberta e seus Inimigos, procedeu da mesma forma).

A última observação que eu gostaria de fazer é o cuidado de separar contribuições ao liberalismo pelas especificidades nacionais. Em resumo, Merquior mostrará como as escolas francesa, inglesa e alemã auxiliaram na formação desse movimento. Vale notar que o próprio contexto nacional mostrou o rumo da discussão, como a perspicaz observação de que na Inglaterra a interação Estado-indivíduo se baseava na associação, ao passo que na França, por ter permanecido mais tempo como uma sociedade hierárquica fechada, o Estado foi usado para libertar o indivíduo. Esse traço mostra o paradoxo que o liberalismo enfrenta. Nas palavras de Merquior: "O paradoxo bem conhecido consiste em que, enquanto a maior parte dos direitos é muitas vezes invocada contra o Estado, é apenas através do Estado que podem ser postos em vigor todos os direitos". Indubitavelmente esse paradoxo é fonte de inúmeras discussões, com diversas abordagens tateando o melhor arranjo. Idem para a mescla de elementos socialistas no liberalismo clássico, fonte de constantes atritos. 

Finalizando, a obra é recomendadíssima para leitores que desejam conhecer a formação, a evolução e o estabelecimento do liberalismo. É um livro denso, tanto por causa dos vários autores citados, quanto pela própria dificuldade do tema. Mas o resultado é positivo. Merquior consegue entregar o prometido.