sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Resenha: A Carta: Para Entender a Constituição Brasileira (Naercio Menezes e André Portela)

Coletânea de artigos analisa os principais pontos da Constituição brasileira

A carta


O livro A Carta: Para Entender a Constituição Brasileira é uma bem-sucedida tentativa de explicar a Constituição de 1988, em pontos fundamentais, para o público leigo. Constituído por artigos específicos a tópicos como educação, saúde e previdência, o livro entrega análise didática e inteligível mesmo para leitores não acostumados com os termos usados na escrita da Constituição. 

O primeiro capítulo mostra que a nossa Constituição não para de crescer. "Modificado inúmeras vezes por meio de emendas constitucionais, o texto que completa três décadas é 44% maior do que quando foi promulgado". Essa característica não é necessariamente ruim, pois muitos dos acréscimos e modificações decorrem de falhas no texto original - a maior delas, na minha opinião, é concernente à previdência social. Por outro lado, esse aumento da Constituição mostra um regime político em constante debate sobre as atuais regras. 

O capítulo seguinte mostra que essa Constituição aprofundou o federalismo brasileiro ao elevar a distribuição de receitas da União para os entes subnacionais, os estados e municípios. Estes últimos, dotados de maior renda, se tornam mais capazes de realizar programas públicos para suas respectivas populações. Em geral, há ganhos de eficiência na descentralização de serviços, uma vez que estados e municípios trabalham mais próximos do público alvo, logo, conhecem melhor a realidade dessas localidades. Todavia, esse aumento de transferências fiscais da União para os entes federativos colocou a União em difícil situação fiscal - há crescentes despesas com uma receita que tende a ser dividida com outros entes. O capítulo encerra afirmando que esse arranjo é um dos responsáveis pela dificuldade fiscal que a União enfrenta atualmente. 

Outro tópico estudado é o da justiça. Nosso sistema de justiça cresceu e se tornou fator de gastos crescentes para mantê-lo: "Em 2014, por exemplo, o Brasil gastou 1,8% de seu PIB com o custeio do sistema de justiça, enquanto, no mesmo ano, França, Itália, Inglaterra, Alemanha e Portugal gastaram entre 0,2% e 0,37% de seus PIBs". A razão para isso é a ampliação de instituições jurídicas no território brasileiro, uma forma de garantir os direitos estabelecidos pela Constituição. Há, adicionalmente, crescente judicialização entre população e governo, permeando áreas como a da educação e da saúde, representando gastos adicionais não previstos pelo Estado. 

Os capítulos seguintes tratam da educação, da assistência social e do Sistema Único de Saúde (SUS). Houve expansão nessas 3 áreas desde a Constituição. Destaque para o aumento da escolaridade dos brasileiros, redução da mortalidade infantil e maior cobertura de serviços de saúde para os mais pobres. Entretanto, os desafios não foram todos resolvidos, como mostra a necessidade de melhorar o rendimento escolar dos alunos em testes internacionais, a existência de pobreza extrema e filas e demora no atendimento no SUS. 

A principal falha desses 3 capítulos, exceto o relativo ao SUS, é a omissão dos custos envolvidos em expandir tanto a educação quanto a assistência social. Sobre o SUS, o autor mostrou que o gasto público se elevou para apoiar a expansão desse sistema. O mesmo ocorreu na educação e na assistência social, mas essa informação não foi colocada pelos autores, uma omissão significativa e estranha de ter ocorrido dada a formação acadêmica dos autores, caracterizada por análises de custos/benefícios em políticas públicas. 

O penúltimo tópico é direcionado ao mercado de trabalho. Nesse ponto, a Constituição produziu vários equívocos. Um deles é a dualidade entre setor público e privado. Os primeiros possuem várias regalias, como estabilidade, salários crescentes, progressões automáticas por idade e ausência de parâmetros para mensurar produtividade, enquanto o segundo se move em consonância com os ditames do mercado. A consequência é a migração de talentos para o setor público, setor de baixa produtividade. Outro problema são os direitos para os trabalhadores do setor privado formal, ponto que ignora o fato de nosso país apresentar elevadíssimo contingente de trabalhadores informais, desprovidos de direitos (proporção oscila entre 40 a 50% da população).

O livro termina analisando o regime previdenciário em seu capítulo mais bem estruturado em termos de explicação do tópico, análise de sua evolução ao longo do tempo, custo envolvido e projeção futura. Ainda que existam alguns analistas e economistas afirmando que a previdência não é deficitária, os dados mostram realidade oposta. Há déficits expressivos em vários anos, com tendência crescente. No futuro, teremos problemas maiores para fechar a conta, uma vez que nossa demografia avança para o aumento da população idosa, enquanto os trabalhadores ativos diminuirão. Teremos de limitar os benefícios concedidos, elevar o rigor para a concessão de aposentadorias e, talvez, exigir maior pagamento de impostos para financiar o sistema. Desde a Constituição de 1988, o sistema previdenciário foi modificado várias vezes, almejando reduzir distorções e gerar sustentabilidade financeira, todavia, mesmo com a reforma previdenciária de 2019, novas reformas deverão ser realizadas. Um dos principais culpados foram as regras iniciais, que concediam benefícios extremamente generosos para servidores, incluindo a não exigência de que contribuíssem para o seu financiamento. Regras totalmente desalinhadas com a realidade econômica. 

Como o livro é composto de capítulos escritos por diferentes autores, não há uma opinião geral sobre se a Constituição foi positiva ou negativa para o Brasil. Fica a cargo do leitor construir essa opinião. Este pode também, com mais parcimônia, avaliar ponto a ponto a Constituição, o que é realizado em cada capítulo. Para não ficar em cima do muro, compartilho a opinião do autor do último capítulo:

"A Constituição Federal de 1988 foi elaborada e votada sob a égide da superação de um período de governos militares, com forte ímpeto distributivista, paternalista e elitista. O cidadão foi considerado hipossuficiente em todas as suas dimensões e cabia ao Estado prover sua subsistência. Poucas foram as considerações acerca do custo e da capacidade da sociedade de atender as demandas expressas no texto constitucional".

Ainda que não se possa negar os benefícios derivados do texto Constitucional como a expansão da educação, da assistência social e do serviço de saúde para brasileiros em condição financeira frágil, os custos decorrentes desses serviços não foram triviais, como bem mostra a previdência, sistema muito mal elaborado e que tem prejudicado as finanças públicas - nossa carga tributária não para de aumentar desde a promulgação da Constituição. Os privilégios concedidos pela Constituição para altos funcionários é outra parte infeliz do texto, a parte elitista evocada pela citação anterior. Em resumo, há custos significativos envolvidos para financiar a Constituição, e não parece que realizar aumentos sucessivos da carga tributária seja a melhor opção.

Por fim, A Carta é instrutivo em vários pontos da Constituição. Senti falta de um capítulo sobre o mercado privado, a burocracia envolvida em abrir empresas e colocá-las em operação, bem como restrições para a competição doméstica e internacional. Outra falha, como afirmado anteriormente, é a ausência de informações sobre o custo incorrido na expansão da educação e da assistência social. Todavia, esses pontos não prejudicam a totalidade da obra, a qual é leitura recomendada para compreender nossas dificuldades atuais, bem como o avanços do Brasil como sociedade. 

















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