terça-feira, 24 de novembro de 2020

Resenha: A Tolice da Inteligência Brasileira (Jessé Souza)

Jessé propõe explicação para a reprodução da desigualdade estrutural da sociedade brasileira

tolice da inteligência brasileira


A intenção do livro é explicar o porquê da sociedade brasileira apresentar enorme desigualdade social. Essa disparidade seria perpetuada e reproduzida pelo "racismo científico", o qual utiliza teorias de países ricos para explicar o insucesso das nações pobres. Nesse caso, o Brasil seria marcado pelo brasileiro emotivo, voltado para paixões, pouco racional, o "homem cordial", enquanto o mundo avançado seria caracterizado por população mais atenta ao cálculo econômico, dando menor margem a traços personalistas. A eficiência estaria com estes últimos.

Para Jessé, essa narrativa é uma forma do 1% mais rico, a elite, ou nas palavras do autor, os "endinheirados", de moldarem o debate público, justificando o acúmulo de suas riquezas, ou seja, estes não somente desejam aumentar o patrimônio, mas desejam também serem percebidos como merecedores do mesmo. Nas palavras do autor: "os ricos e felizes não querem apenas ser ricos e felizes, mas também ter o “direito” de ser ricos e felizes". 

Pilares dessa construção é o Estado visto como ineficiente, e o mercado como área idealizada de eficiência. A corrupção estaria sempre com o primeiro, sendo o governo o responsável pelo atraso do país. Atos ilegais estariam sempre distantes dessa elite. Já o restante da população, principalmente os mais vulneráveis, seriam parte da explicação do insucesso do Brasil como país. Por essa narrativa, responsabilizam-se os pobres pelo fracasso da economia.

Ponto forte do livro é a descrição da vida dessa camada desprivilegiada. As dificuldades que enfrentam no dia-a-dia, os preconceitos, o passado que dificulta possíveis ascensões sociais e as instabilidades dos lares, com conflitos entre familiares. Outro ponto positivo é a análise que Jessé realiza de livros que tentaram explicar essa realidade, como Raízes do Brasil e Casa-Grande e Senzala. Em resumo, o principal fator para tamanha desigualdade ainda existente seria uma incorreta compreensão da própria sociedade. A parte mais rica domina o discurso e o utiliza para justificar suas vantagens, enquanto o restante é enganado sistematicamente pelo "economicismo" (termo nada agradável para economistas) reinante, bem como demais teorias que colocam o brasileiro pobre como o principal elemento para o fracasso do país.

Se por um lado o livro acerta ao descrever detalhadamente as dificuldades da vida do brasileiro vulnerável, ele peca sucessivas vezes quando entra no solo da economia. Citarei 4 partes para evidenciar essa observação.

O primeiro é sobre o suposto "capitalismo selvagem" do Brasil. Jessé nos diz que no país o "capitalismo [é] voraz e selvagem cujo PIB representa quase 70% em ganhos de capital (lucro e juro)". Quando li, levei um susto, esse valor é altíssimo para os padrões retratados nos artigos científicos de economia. Esse valor geralmente oscila de 30% a no máximo 50% da renda nacional. Coletei dados do Peen World Table (PWT) e construí o gráfico abaixo. Veja que a proporção de renda proveniente de capital se inicia em 44,75% e vai decrescendo ao longo do tempo. No último ano, ela atinge a faixa de 41,96%, condizente com o observado nos demais países do globo. 

pwt renda trabalho


Outra afirmação infeliz sobre economia é a relativa aos juros: "Uma das mais importantes justificativas da alta taxa de juros brasileira é a suposta inconfiabilidade dos brasileiros de honrar seus compromissos". Isso está impreciso. A literatura aponta vários fatores, como: i) poupança pública baixa; ii) histórico de hiperinflação; iii) patamar do crédito/PIB (desenvolvimento financeiro); iv) incerteza institucional; v) concentração bancária; vi) comportamento da taxa de câmbio; vii) risco-país. Atribuir a taxa de juros elevada apenas devido ao risco do tomador é simplificar demasiadamente a questão.

Terceiro ponto são as acusações de que a economia brasileira apresenta "capitalismo selvagem", e que a saída para isso seria aumentar o Estado, e não aumentar a liberdade do mercado. Peguei dados do Fraser Institute, o qual mensura a liberdade econômica dos países. A tabela abaixo retrata as nações com mercado mais livre e permissível à competição. O índice tem 189 países, o Brasil ficou na posição de 120º, mais próximo de economias centralmente planejadas pelo Estado. Não entendo o argumento de que vivemos em um país desregulado. Vivemos natureza contrária, uma economia profundamente regulada pelo Estado, com fraco dinamismo econômico (em todos os anos do índice desse instituto o Brasil está mal posicionado entre os países).

brasil hong kong


O último ponto que chamo a atenção é o seguinte: "Que o leitor reflita comigo: realmente o sistema político italiano é menos corrupto que o brasileiro? Será que existe menos corrupção em Wall Street nos Estados Unidos do que na avenida Paulista em São Paulo?". Jessé atribui nível de corrupção semelhante entre o Brasil, a Itália e os EUA. Os dados não sustentam essa afirmação. Veja na figura abaixo, de um trabalho do FMI, o qual mostra que em países avançados e ricos (grupo da Itália e EUA), o desvio de dinheiro público em obras de investimento é de 15%. No grupo dos países de renda média (grupo do Brasil), o uso ilegal do dinheiro é de 34%. Nas nações mais pobres, essa ilegalidade atinge a faixa de 53%. 

investimento público


Há outros tantos equívocos durante o livro. O autor critica o uso de dados para explicar fenômenos sociais, dizendo que eles não conseguem retratar com precisão o objeto de estudo. É estranho, porque as afirmações que mostrei anteriormente, todas incorretas, são facilmente refutadas uma vez que utilizamos os dados. Penso que o uso de dados ajudaria o autor a escrever a sua obra. Por outro lado, os dados derrubariam várias afirmações do livro.

O livro parece resumir a sociedade entre o conflito dos "bonzinhos" (explorados) com os "malvados" (exploradores). Essa crítica foi feita por Bernardo Guimarães em seu excelente livro (e recentemente por Samuel Pessoa no caso do político Ciro Gomes). Esse tipo de dicotomia prejudica o raciocínio econômico, dado que o funcionamento dos mercados não segue essa dinâmica. 

No final do livro, Jessé analisará o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Em nenhum momento é citado o desajuste fiscal, as famosas "pedaladas fiscais", ou "contabilidade criativa" - mesma omissão que percebi no famoso documentário Democracia em Vertigem. A gestão de Dilma acelerou o crescimento do gasto público, enquanto as receitas não conseguiram acompanhar esse aumento. O resultado foi o aumento da dívida pública. Para que as contas fiscais não mostrassem essa deterioração, e considerando a proximidade das eleições presidenciais de 2014, essas contas foram mascaradas, com artifícios contábeis ilegais, desrespeitando a lei de responsabilidade fiscal. Daí a justificativa do impeachment. A crise fiscal que vivemos atualmente é uma herança desse período.

No final das contas, o leitor pode aproveitar a parte do livro relativa ao brasileiro vulnerável, sua condição social, e dificuldades estruturais. Como disse anteriormente, esse ponto é muito bem desenvolvido na obra. Todavia, a discussão no fronte econômico deixa muito a desejar, com argumentos ingênuos e sem o suporte empírico. O pior é que Jessé os utiliza várias vezes, comprometendo a qualidade da obra. 

Por fim, essa leitura me ajudou a entender alguns leitores que me questionam em alguns artigos que escrevo. Eles citam Jessé como justificativa para os seus argumentos. Passei a entendê-los melhor. Mas como disse, a parte de economia não é das melhores. 





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