quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Um beco sem saída

No passado jogávamos a conta sobre os mais pobres. Hoje sobre a geração futura

geração futura impostos


Nas décadas de 1950 a 1980, o excesso de gasto público foi financiado por meio da expansão da moeda, culminando em preços crescentes. A hiperinflação durante a década "perdida" foi um resultado direto desse tipo de financiamento. Ajudava no processo a falta de separação operacional entre Banco do Brasil (BB) e Banco Central. O governo conseguia honrar os seus compromissos pela carteira de "Conta Movimento" do BB. Não havia limites claros para o crescimento dos meios de pagamento. 

O Banco Central, criado em 1964, demorou para apresentar a característica de autoridade monetária do país. Durante o governo dos militares sofreu constantes ingerências pelo presidente de plantão. Na prática, o ocupante da cadeira de Ministro da Fazenda comandava a política do Banco Central. Frase que elucida bem essa descrição é a do segundo presidente militar, Costa e Silva: "O guardião da moeda sou eu". 

Das consequências perniciosas de financiar o gasto público por meio da expansão da moeda, e o subsequente aumento dos preços, destaco o prejuízo imposto sobre os mais pobres. Como estes têm baixo acesso a serviços bancários e financeiros, utilizam nas transações diárias papel moeda. Em um ambiente com preços crescentes, e impossibilitados de utilizarem produtos financeiros para se protegerem da inflação, essas pessoas perdiam rapidamente poder de compra. O descontrole dos preços era um traço que dificultava ainda mais a vida dessa parte da população. 

Há trabalhos retratando que após o Plano Real, em 1994, o qual extirpou o descontrole dos preços da economia, a desigualdade de renda sofreu uma queda abrupta, pois a perda constante e rápida de poder de compra deixou de existir. Os mais vulneráveis podiam continuar transacionando em papel moeda sem grandes preocupações. Esse fato exemplifica uma das vantagens de uma economia com preços estáveis

Alicerce que passou a contribuir com a estabilidade dos preços foi a implementação do Regime de Metas de Inflação (RMI) em 1999. Estamos com ele até hoje. Por meio dele, o Banco Central ancora as expectativas de inflação usando a taxa de juros Selic como instrumento. Quando a economia apresenta baixa atividade produtiva, com preços decrescendo, como o cenário atual, o Banco Central reduz a taxa de juros. Em cenário oposto, ele tende a elevá-la. No RMI, o Banco Central tem uma meta de inflação para seguir e atingir, com um limite de tolerância. É uma forma de política com ampla transparência. Além disso, o RMI mostra que melhoras institucionais significativas são possíveis mesmo em curto intervalo de tempo, embora a regra seja a oposta, otimizações institucionais que possibilitam ganhos relevantes são eventos de longo prazo.

Com preços estabilizados, e sem poder expandir a base monetária para financiar o gasto público, qual foi a saída? Aumento da carga tributária e elevação do endividamento público. Ao longo dos anos, tem sido contínuo o aumento de impostos. Consequência do descontrole dos gastos públicos. 

Quando a receita tributária não consegue equilibrar a conta fiscal, o governo coloca títulos públicos no mercado. Nesse caso, a dívida pública se eleva, juntamente com o pagamento de juros. Para as características da economia brasileira, é uma solução ruim. O mercado precifica o risco de se investir em títulos públicos brasileiros. Ao contrário de economias ricas e desenvolvidas, como a dos Estados Unidos, da Alemanha e do Japão, nas quais o financiamento da dívida pública ocorre em taxas de juros baixíssimas (em alguns casos os credores perdem dinheiro investindo nesses ativos), nossa realidade é outra. Somos uma economia em desenvolvimento, com vários problemas, a começar pela incapacidade de controlar os gastos públicos. Logo, há risco adicional em colocar dinheiro nos nossos títulos. O resultado é a exigência de taxas de juros reais positivas para financiá-los. Nossa dívida não é barata. 

Das consequências de gastar hoje e pagar amanhã, destaco a tributação sobre os ausentes, a geração futura. Como são muito novos, ou não nasceram ainda, são incapazes de se posicionar. De tomar uma posição sobre essa herança que receberão. Economia com dívida elevada significa maior necessidade de impostos no futuro. Esse futuro é o da geração futura. 

Antes do Plano Real, o pagamento do gasto público caía sobre os mais pobres, por meio da inflação. Pela impossibilidade de utilizar esse caminho, agora o método é o endividamento, postergando o ajuste das contas. O preço fica para a geração futura. Parece justo? A verdade é que não há muita saída. A identidade gasto público (G) é igual à receita tributária (T) insiste em se fazer valer. Pode-se ignorá-la, mas não há como fugir das consequências de seu desrespeito. 


PARA APROFUNDAR

Para aqueles que desejam se aprofundar em matéria de política monetária e fiscal, esse livro aqui é recomendado.

2 comentários:

  1. Professor, recentemente foi a câmara um projeto de lei que autoriza o BC a receber depósitos voluntários remunerados.

    Apesar de estar lendo e estudando sobre o assunto, eu ainda não entendi compreendo as vantagens desse sistema em relação ao de operações compromissadas no controle da expansão monetária. Caso o Bacen venha a usar essa ferramenta com frequência, minhas dúvidas são as seguintes:

    1 - A remuneração das reservas bancárias não põe em risco o equilíbrio das contas públicas?

    2 - Como isso irá afetar a taxa juros Selic? Até onde meu entendimento vai, se os depósitos a prazo vão estar sendo remunerados e retidos no BC, não há necessidades de aumento nos juros para enxugar liquidez e conter expansão monetária, isso está correto ou ao menos faz algum sentido?
    3 - Esse modelo se difere em algum ponto do adotado pelo FED? Existem mais autoridades monetárias que adotam esse modelo ao redor do mundo?

    4 - A remuneração de depósitos abre margem para algum tipo de falcatrua?

    5 - Isso pode ser uma paranoia induzida pela desconfiança nas instituições brasileiras e um pouco de propaganda, mas sempre vale a pena perguntar, nesse possível arranjo, os bancos não estariam sendo desproporcionalmente beneficiados pelo estado?

    Se você puder responder algumas dessas perguntas, agradeço muito, nesse período de eleições fica complicado conseguir informações confiáveis. Interesses políticos, jogos de narrativa e idiossincrasias ganham espaço na mídia, pessoas como o senhor que prezam pela honestidade são importantes fontes de informação e honestidade nesses tempos.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Vamos lá, vou tentar te ajudar:
      1) A remuneração das reservas bancárias não põe em risco o equilíbrio das contas públicas?
      - Não necessariamente. A remuneração das reservas bancárias daria maior autonomia para o banco central (BC) realizar política monetária, uma vez que ele não dependeria dos títulos públicos do Tesouro (as operações compromissadas). Uma grande vantagem dessa política é uma maior separação entre a política monetária (Banco Central) da política fiscal (Tesouro).

      2) Como isso irá afetar a taxa juros Selic? Até onde meu entendimento vai, se os depósitos a prazo vão estar sendo remunerados e retidos no BC, não há necessidades de aumento nos juros para enxugar liquidez e conter expansão monetária, isso está correto ou ao menos faz algum sentido?
      - Faz sentido sim. Vamos supor um cenário extremo, no qual o banco central deixe de usar operações compromissadas. Nesse novo cenário, a taxa de juros Selic seria a que remunerasse as reservas bancárias (veja que essa discussão é mais ou menos uma troca de instrumento de política monetária, abandonando as compromissadas e migrando para as reservas remuneradas)

      3) Esse modelo se difere em algum ponto do adotado pelo FED? Existem mais autoridades monetárias que adotam esse modelo ao redor do mundo?
      - Se a memória não me falha, o Fed já adota esse tipo de instrumento. Foi a forma que ele utilizou para financiar o quantitative easing após a crise financeira de 2007

      4) A remuneração de depósitos abre margem para algum tipo de falcatrua?
      - A princípio não.

      5) Isso pode ser uma paranoia induzida pela desconfiança nas instituições brasileiras e um pouco de propaganda, mas sempre vale a pena perguntar, nesse possível arranjo, os bancos não estariam sendo desproporcionalmente beneficiados pelo estado?
      - De forma alguma. Esses bancos recebem juros pela posse dos títulos públicos de curtíssimo prazo (as operações compromissadas). Na extinção delas, eles receberiam juros pelas reservas bancárias

      Em resumo, na minha opinião a principal diferença seria ganho de maior autonomia do BC para fazer política monetária, dependendo menos do Tesouro, pois não precisaria de títulos públicos de curtíssimo prazo (compromissadas), passando a usar depósitos remunerados. Não é algo totalmente novo, pois o Fed já utiliza esse tipo de arranjo.

      Excluir