segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Reservas internacionais podem reduzir a dívida brasileira?


Queimar reservas internacionais para promover o investimento ou abater a dívida pública? Eis a questão


Queimar dinheiro resolve a dívida?

Foto de Jp Valery

Nas últimas semanas, a discussão no fronte econômico parece ter se concentrado na subida da taxa de câmbio brasileira. A infeliz declaração de Paulo Guedes, relacionando câmbio baixo com viagens de empregadas para a Disney, foi a cereja desse impalatável bolo – embora o governo pregue a austeridade econômica no discurso, ele é perdulário quanto à declarações infelizes. Na minha percepção, parece que os brasileiros relacionam um câmbio elevado com inadequado gerenciamento da economia.
Como tantas coisas na vida, e em particular na economia, sempre há vantagens e desvantagens em determinado acontecimento. As oscilações cambiais se incluem nesse rico cenário. Já discuti nesse texto aqui sobre algumas consequências de flutuações cambiais. Hoje chamo a atenção para algo que provavelmente já vem sendo debatido pelos bastidores da atual equipe econômica do governo. Os governos petistas pensaram em algo um pouco similar – pouco, pois se perderam no meio do raciocínio, e felizmente não o colocaram em prática.
O primeiro ponto é a taxa cambial. Como o real perdeu valor comparativamente ao dólar, o câmbio subiu – e irá demorar para vislumbrarmos um câmbio com valor inferior a 4 reais. Uma das vantagens de um câmbio desvalorizado é que se determinada pessoa física ou jurídica possui uma dívida em reais, e ao mesmo tempo possui ativos em dólares, ela pode vender esses dólares, trocando-os por reais, e abater a dívida. Tome por exemplo uma dívida de 100 reais. Caso a minha empresa fictícia “POUPEMOS” tenha 20 dólares em ativos, e o câmbio esteja no valor de 5 reais por dólar, ela troca esses 20 dólares em 100 reais (20 dólares vezes o valor do câmbio, que é de 5) e consegue eliminar todo o endividamento. Por outro lado, caso o câmbio estivesse em 2 reais por dólar, esses 20 dólares de ativos dariam origem a 40 reais (20 dólares vezes 2 reais), e a firma “POUPEMOS” somente conseguiria reduzir a dívida para 60 reais (100 reais menos 40 reais). Veja como um câmbio desvalorizado facilitou o ajuste da firma.
O segundo ponto é a queda da taxa de juros Selic para o patamar de 4,25% - pelo menos para esse ano de 2020, dificilmente essa taxa irá se elevar. Essa taxa é importante para o ajuste fiscal das contas públicas, porque de toda a dívida pública, que está por volta de 4,3 trilhões de reais, a maior parte dela é indexada à taxa de juros Selic (39%). Dessa forma, quando a taxa de juros Selic se reduz, o pagamento de juros do governo para os seus credores (detentores da dívida) também se reduz. Somente no ano passado, o governo economizou 69 bilhões de reais em pagamento de juros em virtude da queda dessa variável.
De posse desses dois fatos, podemos perceber que tanto a alta da taxa de câmbio quanto a queda da taxa de juros Selic podem auxiliar a esfera fiscal. O governo federal terminou o ano de 2019 com um estoque de reservas internacionais avaliado em 357 bilhões de dólares. Supondo uma taxa de câmbio de 4,37 reais por dólar, podemos dizer que as reservas internacionais estão valendo 1,5 trilhões de reais (um pouco mais que um terço do total da dívida pública).
Agora vem a parte do raciocínio que chamei a atenção no início do texto. É consenso entre analistas que o Brasil está com excesso de reservas internacionais. A discordância ocorre quanto ao valor desse excesso – nesse caso, ele poderia ser liquidado (queimado). Vamos supor que dos atuais 357 bilhões de dólares, 100 bilhões sejam puro excesso. Então o governo poderia trocar esses bilhões de dólares em bilhões de reais, e teríamos 437 bilhões de reais para abater no total da dívida pública de 4,3 trilhões de reais.
Teríamos um efeito acumulativo favorável no tocante ao fardo fiscal, pois um total menor de dívida pública geraria menor pagamento de juros. A economia de juros, a exemplo dos 69 bilhões economizados em 2019, poderia ser usada para abater ainda mais o patamar da dívida pública.
O governo petista de Dilma Rousseff discutiu a hipótese de queimar parte das reservas internacionais – mesmo raciocínio que fiz aqui -, mas com outro objetivo, intencionava forçar o crescimento da economia alocando as reservas para investimentos públicos. Era mais um episódio da malograda Nova matriz econômica, modelo fracassado que colocou o país na atual crise. Em linhas gerais, esse modelo tentava promover o crescimento econômico estimulando tanto o consumo quanto o investimento - este último com forte intervencionismo Estatal. O resultado, vivenciado amargamente por todos nós, foi a atual crise econômica com desequilíbrio nas contas públicas. 
Agora a oportunidade é outra. A equipe econômica pretende reduzir o estoque de dívida pública aproveitando-se da alta da taxa de câmbio. A questão é calcular o quanto das reservas internacionais pode ser eliminado sem que o país aumente o risco de crise financeira – algo pouco provável, no meu entender. Medidas para melhorar o fluxo da dívida foram tomadas, como a reforma que implementou o teto do gasto, herança da presidência de Michel Temer em 2016, e a reforma da previdência, realizada por Bolsonaro em 2019. A primeira reforma concerne ao curto prazo, enquanto a segunda se concentra no longo prazo. Ambas se propõem a reduzir o fluxo de dívida. Mais reformas devem ser feitas para melhorar esse fluxo, pois de pouca serventia seria reduzir o estoque da dívida, se ela não parasse de crescer ao longo do tempo. As prometidas reformas administrativa e tributária, que devem ocorrer nesse ano, englobam essa questão de fluxo e estoque – tentam melhorar o fluxo da dívida para interromper o crescimento do seu estoque.
Os próximos dias revelarão a opção que a equipe econômica decidiu tomar. De qualquer forma, a direção tem sido correta, uma vez que o fluxo de endividamento fiscal tende a melhorar, embora não seja algo com resultados nítidos – a reforma da previdência levará anos para surtir os seus efeitos. Isso explica um pouco da gritaria contra o atual governo na área econômica. Em geral, prefere-se usufruir do curto prazo a esperar por resultados do longo prazo, ainda que estes últimos sejam melhores. 

PS: Artigo foi revisto por causa de um erro. Cometi um pequeno equívoco durante o seu raciocínio. Já adianto que o erro está em considerar que a venda de reservas internacionais reduziria a dívida pública. O banco central teria de enxugar o mercado interbancário devido ao aumento de liquidez. O que ocorreria seria uma troca de dívida mantida pelo governo federal para o banco central (este último acumularia maior quantidade de títulos de "operações compromissadas"). Pode ser que a dívida pública se reduzisse dependendo da metodologia do seu cômputo (caso exclua o banco central), mas no geral, a dívida pública não se reduziria, apenas trocaria de devedor. 

PS(2): Percebi meu erro após a leitura da excelente obra A Crise Fiscal e Monetária Brasileira, a qual explica de forma clara o mecanismo de troca de dívidas, "operações compromissadas" e a ilusão de pensar que reservas internacionais podem reduzir a dívida pública. 


2 comentários:

  1. Excelente artigo, bem pontual ! Paulo Guedes é banqueiro velho de casa, já ganhou muito fazendo arbitragem lá no BTG, tá na hora de usar dessa "malandragem" pra nos beneficiar - e a proposito, acredito que SELIC atual esteja abaixo do nível de equilíbrio.

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    1. Obrigado Adriano, a ideia de escrever sobre isso foi ótima! Concordo com você sobre a Selic. Mas acho que não terá pressão para ela subir nesse ano, porque dificilmente a economia irá crescer de forma a pressionar a taxa de inflação.

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