sábado, 12 de setembro de 2020

Resenha: A Crise Fiscal e Monetária Brasileira (Edmar Bacha)

 Livro fornece valioso conhecimento de políticas fiscal e monetária para entender a crise atual 

edmar bacha


O lançamento do livro (em 2017) ocorreu em um momento turbulento da história política e econômica brasileira. As finanças públicas pioravam paulatinamente, a presidente tinha sofrido um processo de impeachment e o PIB sofria uma grande queda. O país parecia sem rumo. Para clarear a confusão na qual a economia se encontrava, esse livro foi produzido.

A essência do livro é destrinchar a relação entre o Tesouro Nacional (TN) e o Banco Central (BC), investigando quais equívocos foram cometidos no passado e traçando novas rotas, possibilidades para a retomada de uma relação mais harmoniosa, ou seja, que respeite a restrição orçamentária do governo e permita certo nível de independência para o BC realizar sua política monetária e garantir a estabilidade dos preços

O ponto inicial da análise é o reconhecimento de que o Brasil, como sociedade política, foi incapaz, até o presente, de enquadrar as demandas sociais dentro do seu orçamento. Com isso, o gasto público cresceu em velocidade superior às receitas, culminando no desajuste fiscal. Todavia, esse descompasso foi mascarado nas contas públicas, as famosas "pedaladas fiscais".

A questão se volta em destrinchar quais mecanismos permitiram realizar esse artifício fiscal. Nesse momento, o foco recai sobre a lei n°.11.803/2008, a qual permitiu o financiamento indireto do BC para o TN. Pela Constituição, tal operação é vedada, mas essa lei conseguiu contornar a proibição ao criar a equalização cambial. Por meio desse dispositivo, o BC transferia os seus lucros em moeda para o caixa do TN, por outro lado, em caso de prejuízo, o TN capitalizava o BC com a transferência de títulos públicos. Além da assimetria entre a liquidez de moeda e títulos, há o descasamento dos prazos. O BC transfere o lucro em até 10 dias úteis, e o TN o abastece, em caso de prejuízo, somente após meses.

No período analisado, como é sabido, o BC acumulou vastas reservas internacionais. Para além dos pontos positivos e negativos dessa estratégia (questão muito bem debatida no livro), esse acúmulo tornou os resultados do BC mais voláteis aos movimentos da taxa de câmbio. Como é mostrado nos textos, os resultados positivos foram mais frequentes do que os negativos, logo, o BC transferiu grande quantia de dinheiro para o TN.

Por lei, o TN tinha que priorizar essa quantia recebida para o pagamento da dívida pública. Entretanto, o inchaço em sua conta (a famosa CUT, Conta Única do Tesouro) permitiu que ele resgatasse títulos públicos, e financiasse gastos primários na economia com o dinheiro que se tornou "livre" por causa do recebimento dos lucros do BC. De forma simplificada, a transferência dos lucros aumentou o campo de fogo do TN.

Na ótica do BC, o problema dessas transferências e o subsequente gasto que o TN realizava (ou transferência dos aportes recebidos para bancos públicos, notadamente o BNDES), elevava a liquidez da economia, criando pressão para a queda da taxa de juros Selic. Como o BC, sob a diretriz do Conselho Monetário Nacional (CMN), deve perseguir determinado nível da taxa de juros Selic pré-estabelecida, ele deve enxugar essa liquidez adicional (caso contrário a Selic fugiria do nível pré-estabelecido), o que ele consegue vendendo ativos lastreados por títulos do tesouro, as famosas operações compromissadas.

Essas operações compromissadas cresceram muito durante o período das transferências do BC para o TN. Elas são títulos de curtíssimo prazo, com remuneração próxima ao nível da taxa de juros Selic. Portanto, o BC aumenta o seu passivo. Outra consequência é a piora da dívida pública do governo, uma vez que as compromissadas têm menor prazo de resgate do que a dívida colocada no mercado pelo TN. Consequentemente, novamente sob o ângulo do BC, ele paga pelo enxugamento da liquidez à base da taxa de juros Selic, enquanto recebe, pelas reservas internacionais, o rendimento da taxa de juros dos títulos norte-americanos, caracterizados por renderem alíquotas próximas de zero. Temos, nesse caso, o aumento da taxa de juros implícita da dívida pública.

Compilando essas informações: i) a dívida pública se eleva; ii) o prazo dessa dívida se encurta; iii) o custo de mantê-la também se eleva (taxa de juros implícita); iv) país perdeu o grau de investimento com a piora macroeconômica; v) embora, juridicamente, o BC e o TN não tenham violado o artigo 164 da Constituição (há essa discussão no livro, explicitando as razões pela não violação), o qual assinala que é vedado ao Banco Central conceder, direta ou indiretamente, empréstimos ao Tesouro Nacional”, na prática, é difícil não compreender essa engenharia como um financiamento indireto do BC para o TN.

O livro baterá diversas vezes na tecla da falta de transparência do BC com o TN. Com maior transparência, maior parte do público poderia ter detectado essa fonte de financiamento e a piora das contas públicas poderia ter sido evitada ou amortecida. Diversos dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal (de 2000) foram ignorados. 

O livro é bastante técnico, com linguagem que pode ser um pouco difícil para não economistas. Há diversos gráficos fornecendo suporte para as afirmações, o que pode parecer um pouco tedioso para os não apegados a análises mais criteriosas. Mas o esforço compensará no final - afirmações ingênuas e precipitadas, do tipo emitir moeda sem custos para gerar crescimento, dificilmente ocorrerão após a leitura dos capítulos. O leitor saberá das dificuldades de regular duas instituições basilares para o funcionamento de uma economia. 

Talvez o problema principal das finanças públicas esteja contido na passagem de Eduardo Guimarães e Pedro Malan: "Ao dispersar demais suas atividades, o Estado fica mais suscetível a ceder a interesses isolados, a persistir em promessas que não pode cumprir, a criar expectativas de mais direitos por adquirir e a assumir metas e objetivos inalcançáveis". Como consequência dessa pressão, temos que arcar com déficits primários e aumento da dívida pública. Segundo Armínio Fraga: "no período recente o maior problema para a saúde das contas públicas brasileiras não está na relação entre o BC e o TN, mas, sim, na extraordinária deterioração do saldo primário do governo a partir de 2014, que precisa ser urgentemente revertida, de forma estrutural e permanente".

Como ainda estamos sofrendo as consequências da irresponsabilidade fiscal de anos anteriores, o livro é essencial para colocar o leitor dentro dos principais problemas fiscais e monetários da economia brasileira.


PARA APROFUNDAR:

Leituras adicionais para entender nossa crise:

1) Coletânea de artigos de nosso ex-ministro da fazenda entre 1995 e 2002, Pedro Malan, aqui

2) Livro técnico, organizado pelos pesquisadores da FGV, que se propõe a explicar o porquê de nosso baixo crescimento aqui







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