domingo, 20 de setembro de 2020

Resenha: 21 Lições para o Século 21 (Yuval Noah Harari)

Harari mostra os desafios que a biotecnologia e a tecnologia da informação acarretarão para a organização da sociedade do século XXI

harari


Yuval Noah Harari completa sua trilogia com o livro 21 Lições para o Século 21. Depois de escrever sobre o passado da humanidade em Sapiens: Uma Breve História da Humanidade, e mostrar como pode ser o nosso futuro em Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã, 21 Lições se concentra no presente à luz do passado e com ligações com o futuro.

Quem leu os livros anteriores perceberá a conexão entre as 3 obras. A teoria dos mitos, apresentada no primeiro livro, é utilizada várias vezes para mostrar como nossa sociedade foi erguida e consolidada. O mesmo é válido para as consequências da superação dos 3 maiores temores dos humanos em toda a história: fome, praga e guerra, discussão realizada no segundo livro, mas que permanece implícita durante o livro atual. Embora não obrigatório, a leitura das obras anteriores permite melhor experiência ao ler as 21 lições.

Sobre o livro, o objetivo é mostrar as principais implicações que possivelmente enfrentaremos com as evoluções da biotecnologia (exemplo: estrutura celular que possibilitaria o alongamento de nossa vida) e da tecnologia de informação. O mundo caminha para se tornar cada vez mais digital. O avanço do comércio eletrônico com a Amazon, a oferta de serviços de streaming pela Netflix, a utilização de nossos dados coletados pelo Facebook e pelo Google para melhorarem nossa experiência online e a expansão de serviços bancários por aplicativos são amostras da sociedade que emergirá por volta da metade desse século. Harari questiona qual o lugar do homo sapiens em meio a esse ambiente.

Os campos da liberdade e igualdade serão rediscutidos. No caso do segundo, uma elite mundial poderá ter o domínio dos dados privados do restante do planeta (hoje 8 bilhões de pessoas) - o termo usado é ditadura digital. Máquinas nos conhecerão melhor do que nós próprios, por meio da coleta de nossos cliques, emails e sites acessados. Com o avanço da medicina, robôs poderão nos diagnosticar e medicar. O mercado de trabalho poderá se encolher, pois há a tendência da ascensão dos carros automáticos, desprovidos de motoristas, de substituir os atuais modelos. Harari levanta a hipótese da existência de uma classe de desempregados, sem lugar na economia ("useless class"). 

Nesse ponto, o autor faz ressalvas, dizendo que no passado o mesmo temor de que as máquinas iriam tomar os nossos empregos existiu, sendo todavia equivocado, uma vez que novas ocupações compensaram a substituição de funções manuais (humanas) por automáticas (máquinas). Entretanto, ele insiste que agora pode ser diferente, pois os setores industrial e de serviços foram os que forneceram os novos empregos. Estaríamos, no futuro, sem válvula de escape. E termina afirmando que o que ocorreu no passado não garante que será novamente repetido no futuro.

É no mínimo curioso descartar a experiência passada para explicar o futuro, uma vez que a maior parte do livro é construída utilizando a história passada para pavimentar possíveis caminhos que seguiremos no futuro. Harari justifica diversas conclusões e análises resgatando exemplos do nosso passado. Mas no tocante ao mercado de trabalho ele ignora os acontecimentos desde a eclosão da revolução industrial. Vejo isso como um dos raros escorregões analíticos que o autor comete durante o livro.

Se no passado enfrentamos 3 grandes problemas (fome, peste e guerra), atualmente os 3 problemas são globais: aquecimento global, guerra nuclear e ruptura tecnológica (technological disruption). O aquecimento global mostra que ainda que alguns países façam o esforço de reduzir as emissões de gás estufa, o efeito pode ser infrutífero caso outras nações não realizem a mesma estratégia. Qualquer guerra nuclear, se implementada, poderá representar o fim da humanidade, unicamente por causa do poder destrutivo dessas armas. A ruptura tecnológica impõe diversas questões de cunho político, econômico, social e filosófico sobre a forma de convivência. Por exemplo, como confiar a coleta de dados privados por uma empresa de um regime totalitário como a China? (usando o dilema do TikTok para ilustrar). A resposta para esses desafios envolve cooperação global.

De cara, o nacionalismo se coloca como enorme obstáculo. Por definição, essa corrente tende a fechar o país para si mesmo. A emergência de Donald Trump e a saída do Reino Unido da União Europeia, o Brexit, mostram que a cooperação global para desafios mundiais não será algo fácil de ser implementado. 

Harari mostrará enorme habilidade ao argumentar que uma das ilusões que deveríamos superar para possibilitar a cooperação global é compreender que não somos o centro do universo. Nossa cultura não é superior à dos demais países, seja ela qual for; de forma análoga, nosso Deus também não se coloca em patamar superior ao dos demais. As histórias que moldam a existência das nações não são únicas, mas eventos compreendidos em um todo, a civilização: "There is just one civilisation in the world".

Em uma palavra, deveríamos ser mais humildes tanto em relação ao nosso contexto nacional quanto com nossa trajetória. Imagino que Harari sofrerá muitas críticas ao reduzir o papel das religiões, movimentos nacionalistas e da própria desqualificação do significado do homem (mulher) como o centro do universo. O autor alerta que deveríamos prestar mais atenção ao que de fato é real, e fugir das ilusões e estórias que contamos para nós próprios; estórias moldadas por filmes, livros e costumes, pois a vida não é uma estória ("Life is not a story"). O planeta Terra é um conjunto de átomos no qual nós tentamos colocar significado - ponto trabalhado em maior detalhe no livro Sapiens.

Há outros tópicos trabalhados e discutidos de forma primorosa, como terrorismo, imigração, pós-verdade, fake news, ditadura digital e secularismo. É um livro abrangente e muito atual, essencial para os leitores que almejam compreender os desdobramentos correntes em profundidade. Harari não decepcionou, mostrando agudo senso analítico durante a obra, assim como visto nos livros anteriores. Por esse livro e pelos anteriores, Harari se coloca como um dos principais intelectuais da atualidade.



PARA APROFUNDAR

1) primeiro livro de Harari, Sapiens: Uma Breve História da Humanidade aqui

2) continuação de Sapiens, Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã aqui












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