segunda-feira, 27 de julho de 2020

Reforma tributária sem reforma fiscal será incompleta

Gasto previdenciário/funcionalismo deve desacelerar e se tornar mais flexível para abrir espaço para o investimento público 

governo


Em meio às discussões sobre a reforma tributária, é importante não cair nas armadilhas de panaceia ou de medidas simples, rápidas - e equivocadas. Provavelmente uma reformulação do sistema de coleta de impostos irá ajudar muito na recuperação econômica brasileira e nos prospectos de crescimento de longo prazo, mas sozinha, essa reforma pode se mostrar pouco eficaz caso outros problemas estruturais não sejam combatidos.

Talvez o principal deles seja o crescente gasto primário do governo. As duas maiores despesas que ele possui é com os benefícios previdenciários e com o funcionalismo público/encargos sociais. No caso da previdência, é uma despesa rígida, difícil de ser alterada. Como testemunhamos em 2019, reformá-la foi tarefa penosa. Sobre o salário dos servidores (funcionalismo), a princípio poderia parecer um pouco menos árduo o objetivo de reduzir os seus ganhos, mas como o STF mostrou, é igualmente difícil - STF julgou inconstitucional reduções temporárias dos honorários dos servidores.

Dessa forma, duas conclusões podem ser realizadas. A primeira é a dificuldade de reduzir o gasto público. Uma vez levantado, dificilmente ele retorna ao seu nível anterior, pois tende a se transformar em despesa permanente. Consequentemente, o governo passa a ter um orçamento rígido, com pouco espaço para realocações de verbas. O segundo ponto é que reduções de gastos, dada a inflexibilidade das despesas, se dirigem às despesas que podem ser alteradas, como gastos com saúde (apesar desse gasto também ser parcialmente rígido por determinação constitucional). 

Por mais que se diga o contrário em redes sociais (às vezes até mesmo em programas televisivos), o gasto público deve ser enquadrado pelos impostos. Em outras palavras, caso o gasto se eleve, os impostos também tenderão a se elevar para financiá-lo, caso contrário, teríamos uma dívida pública crescente (como de fato temos). Caso o gestor da economia ignore essa lei, emitindo mais moeda, o resultado não seria melhor, viveríamos com o descontrole dos preços - no pior cenário, hiperinflação e desequilíbrio macroeconômico. As leis econômicas são implacáveis, não se inclinam à boa vontade ou à discursos magnânimos.

Agora juntarei as informações anteriores. Não espanta a notícia de que o país tem um déficit de 18 mil leitos hospitalares no SUS. Estranho seria se não o tivesse! Dado que as maiores despesas públicas são gastos (previdência e salários), não investimentos, as quais não podem ser reduzidas por ordem constitucional, implicitamente optamos por um modelo de sociedade que pouco privilegia investimentos públicos e gastos em saúde e em educação. Lembre sempre da regra de que o gasto do governo é igual ao total arrecadado.

Uma saída (não muito aconselhável) seria elevar continuamente a carga tributária, pois assim o governo elevaria sua receita tributária, podendo financiar a expansão de gastos na saúde. Mas nesse caso viveríamos em um país com alta dose de impostos sobre a sua população, como de fato é a nossa realidade. Posto de outra forma, parece que nossos políticos preferem esse tipo de escolha, evitando a impopularidade de reduzir benefícios previdenciários e salários públicos e elevando impostos ao longo do tempo. Cenário desafiador para famílias pobres e pequenas empresas.

A última observação que faço é sobre argumentar apenas em direção ao aumento dos gastos em saúde ou educação. E a eficiência desse gasto? Ele está gerando retornos positivos? Nos últimos anos, nosso país praticamente dobrou o gasto de educação por aluno. O desempenho educacional melhorou proporcionalmente? Se a resposta for negativa, deve-se questionar a forma como esse gasto é realizada, e buscar por alternativas mais promissoras. Somente gastar não é a resposta. A economia nos diz que o retorno social deve ser superior ao custo financeiro da política.

A reforma tributária pode alterar a estrutura da receita do governo, tornando o sistema mais progressivo, transparente e menos oneroso. Mas pouco ajudará se não alterarmos a forma como o gasto público é realizada. Imagine um cenário no qual os gastos previdenciários e salariais se elevassem de forma superior ao aumento da receita tributária. O gasto em saúde seria asfixiado, não teria espaço para se elevar - pelo contrário, poderia ser reduzido para ajustar as contas fiscais. Qual o benefício que teríamos? O debate tributário deve ser realizado de mãos dadas com o debate do gasto público.

Obs.: venho discutindo a reforma tributária em uma série de artigos aqui e aqui.












3 comentários:

  1. Luccas, boa tarde!
    Algumas considerações sobre o texto.
    Primeiro, a reforma tributária é essencial por vários motivos. Principalmente, há uma agenda de simplificação (o que essencialmente está em discussão no momento no Congresso) e uma agenda de tornar o sistema tributário mais progressivo, em linha com o que ocorre nos países da OCDE, por exemplo (o que não está em discussão atualmente, embora seja também muito necessária).
    Segundo, sobre o gasto primário, sempre pensando na União, o que parece ser seu foco de análise do artigo. Em todos os países do mundo, o gasto primário sobe, claro, a diferentes velocidades. O importante é controlar a velocidade em que cada despesa sobe, sempre em proporção do PIB. De fato, a previdência é a despesa que mais sobe em % do PIB nas últimas décadas. A solução é fazer reformas a cada momento em que se entenda que a velocidade em que essa proporção suba de maneira insustentável – exatamente o que foi feito em 2019, com repercussões positivas já perceptíveis até mesmo na PLOA 2021 na redução do crescimento dessa despesa. E isso deve ser revisitado de tempos em tempos, com ajustes necessários eventualmente.
    Sobre os gastos com funcionalismo, analisando-se essa despesa como proporção do PIB, ela se situa há mais de duas décadas estável e perto de 4% do PIB. Quando se consideram essas despesas em proporção do PIB potencial, ela tem inclusive caído nos últimos anos. Ou seja, é falaciosa a ideia de que esses gastos causaram o problema fiscal do país.
    Terceiro, sobre algo ausente em sua análise: o crescimento econômico. Como já disse anteriormente, e é o usual em termos de literatura de finanças públicas, usa-se o conceito de despesas em proporção do PIB. Ou seja, tão relevante na análise da evolução das despesas é o que ocorre na taxa de crescimento da economia. E é aqui que reside o verdadeiro problema de nossa economia.
    Em termos práticos, é impossível fazer um ajuste nas despesas tão duro que não subam as despesas como previdência (de todos os brasileiros) ou o gasto com funcionalismo (com a contratação de novos funcionários para a expansão dos serviços públicos ou pela simples devolução da inflação para os funcionários efetivos ao longo do tempo), mas também dos investimentos (com a depreciação que ocorre invariavelmente e nossas necessidades), e outras despesas, tais como educação (com 2 milhões de crianças nascendo ao ano, grosso modo) e saúde (com a crescente população idosa). Ademais, é um fato que o crescimento está muito baixo até em termos históricos. Entre 1980 e 2014, crescemos algo como 2,6% ao ano. Desde 2015, considerando este ano de 2020, estamos com crescimento negativo anual (!). Segue-se que não existe ajuste fiscal possível sem acelerar a taxa de crescimento. Assim, temos que discutir o porquê da taxa de crescimento do PIB ser tão baixa – o que já é outra discussão – e como fazer um ajuste fiscal inteligente e bem desenhado. Aproveito para deixar uma proposta (http://brasildebate.com.br/entre-narrativas-e-fatos-sobre-a-questao-fiscal-por-um-novo-teto-de-gastos-parte-2/).
    Grande abraço,
    Helder.

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    1. Oi, Helder, obrigado pelos seus comentários, me ajudaram a pensar um pouco mais sobre esse tópico.

      Vamos lá:
      1) Concordo com você sobre a busca de uma tributação mais progressiva, em linha com a OCDE.
      2) Também estou em acordo com a necessidade de revisões na previdência. Sobre o funcionalismo, ainda que tenha permanecido constante (em 4%), caso ele caísse para 3%, estaríamos abrindo espaço para gastos em outras áreas mais urgentes, ao mesmo tempo alinhando o salário médio do funcionalismo com o do setor privado (pelo menos em profissões parecidas)
      3) Muito bem apontado por você sobre a necessidade de resgatar o crescimento econômico. A meu ver, o principal empecilho para o mesmo é a baixa produtividade do trabalho e do capital que temos. A Nova Matriz Econômica causou uma verdadeira bagunça no ambiente micro e macroeconômico, é difícil reverter essas coisas (como estamos vendo com a crise fiscal)
      4) Sobre os fatores que poderiam melhorar o crescimento, acho que há até um consenso sobre alguns pontos, como a necessidade de abertura comercial, atração de investimento estrangeiro, redução da burocracia, entre outros. Mas concordo que é uma discussão que poderia estar em paralela à da reforma tributária. Eu deveria ter apontado essa informação. Obrigado pela dica!
      5) Vou ler o texto que você me passou, novamente, obrigado pela dica de leitura!
      Abraço!

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    2. Olá, Luccas.

      Sobre 2, é factível, mas sem necessidade de nada draconiano ou radical. A solução é essas despesas crescerem menos que o PIB ao longo dos anos. Sobre essa disparidade, realmente existe algum prêmio salarial para o funcionalismo, mas ele é muito menor do que o alardeado na imprensa - e esse prêmio existe usualmente no mundo. Depois podemos conversar sobre isso. E claro que há alguns excessos que podem ser revistos, sobretudo no judiciário e legislativo.

      Sobre 3, discordo das razões para o baixo crescimento, mas é uma outra discussão. Mas estou de acordo que houve erros que contribuíram para a crise de 2015-16. Será que estaremos em 2030 e culpando ainda o espantalho da NME para o baixo crescimento (oxalá que não estejamos nessa situação)?

      Sobre 4, tem várias coisas que poderiam ser feitas para melhorar o crescimento, e a reforma tributária é uma delas, contribuindo até para a redução da burocracia, como você disse. E fora a agenda de LP, existe a agenda de CP que tem de ser revista, dado nosso hiato altamente negativo desde 2015.

      Abraço,

      Helder.

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