terça-feira, 11 de agosto de 2020

O consumidor é soberano?

Com poucas exceções, nenhuma empresa sobrevive sem satisfazer os seus consumidores

consumidor soberano


As maiores empresas mundiais, como a Apple e a Amazon, ofertando serviços em mais de 150 países, exibem tecnologias avançadas acopladas aos seus respectivos produtos. Conseguem elevar os seus lucros mesmo em situações caóticas, como a que vivemos, deflagrada pela Covid-19. A outra moeda desse fenômeno são os bilhões de indivíduos que compram os seus produtos.

A Apple lança um novo Iphone a cada ano, com valores se aproximando de 10 mil reais. Consumidores se apressam em obter o produto, o qual apresenta grande variedade de serviços - a ponto de mal recordarmos que o objetivo principal desses dispositivos, em uma avaliação histórica, é a ligação. Casos semelhantes ocorrem quando concessionárias lançam novos carros ou quando a Sony anuncia a criação de um novo Playstation. Pessoas se amotinam para usufruir da novidade.

A teoria econômica padrão explica o sucesso das grandes empresas pelo comportamento do consumidor soberano. Caso a Apple, a Amazon e a Sony não conseguissem atrair muitos consumidores, estariam destinadas a perder escala de vendas, a fechar filiais e  a perdas graduais de lucro. No longo prazo, talvez nem mais existiriam.

A proposta do consumidor soberano, todavia, é questionada por outras teses. De acordo com Harari, em seu livro Homo Deus (resenha aqui), nossas decisões são pautadas por 3 fatores: o genético (herdado de nossos ancestrais), o social (o meio que nos cerca) e nossa experiência. Os dois primeiros estariam fora de nossa influência, pois nascemos com o primeiro e somos, ao nascer, inseridos no segundo fator. Resta, portanto, apenas nossa experiência subjetiva.

Nossos ancestrais (pense no homo sapiens há 70 mil anos) tinham como objetivo sobreviver à fome e às adversidades, como ataques desferidos por outros animais. A melhora de vida era processo moroso. Todavia, existia a busca por melhores condições. Toda ação era pensada em otimizar o resultado final, ainda que erros fossem cometidos. O processo de tentativa e erro permeava a experiência dos nossos antepassados, algo existente nos dias de hoje. Dessa forma, parte do nosso comportamento consumidor, visando melhorar o nosso conforto, pode ser atribuído a essa genética. 

O segundo fator é o social. Somos cercados pelos costumes e tradições de nossa época. Seguimos regras de etiqueta ao visitarmos as casas de outras pessoas, ao entrarmos em estabelecimentos privados. Sentimos embaraço caso utilizamos roupas amarrotadas ou sujas, pois há o costume implícito de utilizar determinado tipo de roupa. Assim, nosso padrão de consumo é limitado pelo ambiente. 

Adicionalmente, temos a influência do marketing sobre o nosso consumo - ainda nesse segundo fator, o social. Somos bombardeados com comerciais sugerindo a relação entre consumo e felicidade. Nas ruas, vários cartazes e outdoors mostrando as novidades.  Relacionando com nossa genética, o homo sapiens procurava se diferenciar de seus companheiros para ter maior prestígio, conseguir as melhores esposas, ser saudado por seus companheiros. O excelente livro de Veblen, A teoria da classe ociosa, retrata esse ponto. No livro, o autor mostra como a diferenciação e a busca de prestígio ocorrem na esfera do consumo, o qual é promovido com o objetivo de mostrar o grau de riqueza, o consumo conspícuo

Atualmente não somos diferentes disso. Ao comprar um carro novo ou um novo Iphone, além das atratividades de novos benefícios, melhor funcionamento e tecnologia de ponta, há também o fator da busca de status entre nossos iguais. Produtos caros, em geral, chamam a atenção de outras pessoas. Somos suscetíveis a esse tipo de comportamento, por influência tanto genética quanto do meio no qual vivemos - obviamente não admitimos abertamente esse motivo, pois ele seria julgado como fútil, característica vista como negativa por nossa sociedade. Meu ponto é o de mostrar apenas que o consumo pode ser motivado pelo ambiente que nos cerca.

O último fator é nossa experiência subjetiva, os gostos e preferências que possuímos. A partir disso, avaliamos os produtos que conseguem se adequar a essas exigências. Daí a soberania do consumidor. Apenas os produtos mais aptos a nos satisfazerem são escolhidos. Se hoje o refrigerante da Coca Cola continua com elevada lucratividade, apesar dos protestos e críticas sobre a sua composição, é porque os consumidores "votaram" para a permanência da Coca Cola ao efetuarem a compra de seu refrigerante. 

Indubitavelmente os 3 fatores concorrem para explicar nossas compras. Nossos genes interferem no nosso comportamento, o meio social limita nossa margem de escolha e toda aquisição que fazemos decorre de nossa decisão individual. A pergunta prossegue: o consumidor é soberano?

Com esses fatores elencados, temos de usar a definição de responsabilidade individual para auxiliar na resposta. Responsabilidade individual implica que somos os principais responsáveis por nossas ações, bem como por suas consequências. Não é o social, ou o meio coletivo o principal responsável pelo comportamento das pessoas. Em última instância, toda ação decorre da decisão individual da pessoa. Não é o social que "puxa o gatilho", mas a pessoa. Dessa forma, ao comprar determinado produto, apesar das importantes influências genéticas e sociais, a decisão, invariavelmente, é do consumidor individual. 

A ressalva que faço são os casos de subsídios do governo para a sobrevivência de empresas - ou proteção de mercado. Nesse caso, a existência dessas empresas não passou pelo teste do consumidor soberano. É o caso das estatais, as quais, por definição, não passam pelo teste do mercado, pois contam com fundos públicos. Todavia, com exceção desses casos, a emergência, o crescimento e a consolidação de grandes empresas ocorrem porque milhares de indivíduos aceitaram os serviços que elas ofertaram. Exerceram a liberdade de transferir suas rendas para essas empresas em troca de suas mercadorias. Por trás de toda grande empresa há uma miríade de consumidores satisfeitos com os seus produtos. Futuramente, caso a Apple perca a liderança tecnológica, veremos também, concomitantemente a essa queda, menor receita de vendas. Os consumidores teriam, nessa hipótese, a abandonado.
















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