sábado, 29 de agosto de 2020

Resenha: A Lanterna na Popa (Roberto Campos)

50 anos de Brasil contados sob a visão de Campos, personagem que participou ativamente nos debates econômico e político do país

lanterna na popa


Com vasta experiência nos serviços públicos (foi Ministro do Planejamento, Presidente do BNDE e embaixador do Brasil nos EUA e no Reino Unido), eleito deputado federal e senador, tendo participado direta ou indiretamente das principais questões de cunho econômico do Brasil, Roberto Campos tinha muita história para contar, detalhes que poderiam nos ajudar a compreender os caminhos tomados pelo Brasil. Assim surgiu a sua autobiografia, obra prima e clássico sobre a história econômica brasileira das últimas décadas.

Descrevendo as políticas e debates econômicos desde a década de 1940 (governo Vargas), Roberto Campos sempre foi um defensor do i) livre mercado, da entrada de multinacionais para promover maior concorrência, ii) de um governo com contas ajustadas, reduzindo gastos improdutivos para permitir o aumento de gastos com elevado retorno social, como os gastos em educação, saúde e segurança, iii) da redução das barreiras comerciais, para viabilizar o aumento do fluxo de mercadorias, expandindo o mercado doméstico, iv) e de regras mais claras, simples e estáveis para regular o setor privado. Em suas palavras: "Há quatro características essenciais ao capitalismo: reconhecimento da propriedade privada, sinalização mediante o sistema de preços, livre acesso ao mercado pelos agentes econômicos e regras estáveis do jogo num Estado de direito".

Essas posições podem ser resumidas no termo produtividade. Campos sabia que para o brasileiro apresentar maior padrão de vida era necessário torná-lo mais produtivo, com o aumento de investimento em máquinas e na educação (capital humano) e a promoção tecnológica. Conceder reajustes salariais acima do nível da produtividade, portanto, inflacionários, surtiria efeitos transitórios de curto prazo, com consequências deletérias para o ambiente macroeconômico no longo prazo. Dessa forma temos outra característica de Campos, a constante luta para manter os preços estáveis. Em sua avaliação, a causa da inflação era o gasto descontrolado do governo, o qual era monetizado, ou seja, financiado pela emissão de moeda.

No debate sobre a melhor forma de acarretar o desenvolvimento do país, dizia Campos: "como conciliar entre si a democracia, que estimula reivindicações e exige satisfações; a acumulação, que pressupõe autoridade para postergá-las e disciplina para investir; e a distribuição, que deseja renda e consumo no presente, sob pena de frustração e de protesto". É o que o autor denominou de trilema do desenvolvimento, a dificuldade de conciliar democracia, distribuição e acumulação. Sem dúvidas, questão que ainda cerca o debate econômico do país e fonte de discussões acaloradas. 

Campos participou da elaboração da Constituição de 1988, e o leitor perceberá sua angústia durante o texto, os alertas ignorados, as críticas não ouvidas. Argumentava que estávamos criando uma Constituição que pressionaria os gastos públicos sem a contrapartida de elevar as receitas, muitos direitos e poucas obrigações, muitas benesses e pouca preocupação com a produtividade. Sobre o sistema previdenciário: "quisemos ter uma seguridade social sueca, com recursos moçambicanos". A crise fiscal que atravessamos hoje é um testemunho do acerto dessa previsão.

"Quando se busca sair de uma situação autoritária, a opção mais eficaz é começar pela liberalização econômica, passando depois à liberalização política". Essa prescrição estava em voga quando o livro foi escrito. A década de 1990 marcou o declínio dos regimes autoritários da União Soviética e da Europa Oriental, economias que buscavam se modificar e se adaptar aos novos tempos, portanto, almejavam profundas transformações. Ao mesmo tempo enfrentavam a dificuldades da transição - o livro de Jeffrey Sachs, O Fim da Pobreza, descreve em detalhes esses episódios, dado que ele foi conselheiro econômico de alguns desses países (resenha futura). O Brasil era um caso um pouco parecido, embora em menor magnitude. O país caminhava para um regime democrático, mas com uma economia em grande parte dominada por estatais, regulamentações e baixa competição.

Em resumo, o livro contará dificuldades, esperanças e desilusões ao longo dos 50 anos de um Brasil que demorou para escutar os conselhos de Campos. Daí sua famosa frase: "a conjuntura internacional me tinha transformado de herege imprudente em profeta responsável". É que o país seguiu uma industrialização com elevada proteção para os produtores domésticos, sem se preocupar em ganhar os mercados externos, todavia, essa estratégia se esgotou, e o consenso internacional em 1990 era abrir as portas para a globalização comercial e financeira, ou seja, promover uma economia mais aberta e dinâmica, justamente o que Campos sempre pregou. Talvez a frase de Marshall se enquadre bem nessa mudança de herege para profeta: “não se pode ser patriota e popular ao mesmo tempo”. 

Obs.: tenho uma resenha de outro livro de Campos aqui









2 comentários:

  1. li a sua resenha. Excelente. Roberto Campos é um dos grandes pensadores desse país e um dos mais incompreendidos.

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